Mamães no "cantinho da disciplina"
Setenta anos atrás um homem de meia-idade entrou no estúdio de uma rádio da BBC, em Londres, para gravar a primeira de uma série de palestras que transformariam radicalmente o modo como as mães pensam seu papel.
As cerca de 50 emissões feitas pelo pediatra e psicanalista Donald Winnicott entre 1943 e 1962 sobre uma grande gama de tópicos --desde aleitamento e desmame até ciúmes e furtos-- popularizaram seu pensamento psicanalítico sobre a relação entre bebês e suas mães de tal maneira que alguns dos termos que ele cunhou, como a "mãe suficientemente boa" e o "objeto transicional", passaram a fazer parte do discurso cotidiano.
Divulgação |
O pediatra Donald Winnicott (1896 - 1971), em foto sem data |
Winnicott rejeitava totalmente a ideia de dar conselhos. Para ele, quando as mães tentam fazer coisas segundo o recomendado por livros --ou pelo rádio--, "perdem contato com sua própria capacidade de agir sem saber exatamente o que é certo e o que é errado".
No entanto, hoje existem muito mais livros com conselhos para pais (cada um propondo sua própria série de regras) do que existiam 30 anos atrás, e as rádios e televisões estão cheias de programas como "Supernanny", que dirigem um olhar crítico sobre pais, como geralmente são conhecidos, mas que a maioria de nós costuma pensar como sendo as mães. Às vezes parece que são as mães, mais que os filhos, que estão sendo enviadas para o "cantinho da disciplina".
Como foi que passamos do gentil Dr. Winnicott para a admoestadora Jo Frost? E, na era do Mumsnet (site britânico com fóruns de discussão e troca de ideias e apoio entre pais e mães), será que realmente precisamos desta enorme "indústria" de aconselhamento para pais?
Winnicott receava que focar sobre famílias patológicas ao invés de "a mãe devotada comum e seu bebê" (título de sua série mais famosa) pudesse provocar ansiedade em suas ouvintes sem acesso a terapia. "Não posso dizer a você exatamente o que fazer", ele disse, "mas posso discorrer sobre o que tudo isso significa." E foi o que fez, louvando o papel da mãe boa o suficiente --uma mãe que pode ser amada, odiada e em quem se pode depender-- em dar ao bebê condições de se desenvolver e tornar-se um adulto saudável e independente.
Enquanto muitos dos gurus atuais do aconselhamento para pais focam os comportamentos desviantes de uma criança e o modo como supostos erros dos pais contribuem para isso, Winnicott procurava ajudar as mães a compreenderem o significado do comportamento de seus filhos, quer se tratasse de "chupar um paninho" ou de manifestações de ciúme, e as maneiras em que elas instintivamente continham as ansiedades de seus filhos.
Suas palestras foram publicadas em um livro --"The Child, the Family and the Outside World" ("A Criança e seu Mundo")-- que ainda é lido e apreciado décadas mais tarde. Uma razão do sucesso de suas palestras foi a atuação (subsequentemente quase ignorada) de suas produtoras, Janet Quigley e Isa Benzie, que o ajudaram a levar suas ideias para o microfone e não apenas fizeram sugestões que Winnicott incorporou em seus scripts, como monitoravam as emissões para identificar colocações que pudessem gerar sentimento de culpa nas ouvintes-mães.
Outra razão pela qual as palestras de Winnicott tiveram valor tão duradouro foi a capacidade dele de comunicar-se de maneira simples e vívida com um público leigo, embora falasse numa voz tão aguda que muitas ouvintes achavam que ele fosse mulher (ele fez suas transmissões de modo anônimo, como faziam todos os médicos na época).
A popularidade de Winnicott e de Susan Isaacs, psicoterapeuta que fez transmissões radiofônicas antes dele e foi colunista da revista "Nursery World", foi em parte uma reação contra os austeros conselhos anteriores de Frederic Truby King, a Gina Ford de seu tempo, recomendando às mães que amamentassem seguindo o relógio, de quatro em quatro horas, deixando o bebê sozinho, sem tocar nele e ao ar livre, entre uma mamada e outra.
Embora alguns digam que mais mães sabiam sobre o sistema de Truby King do que as que o praticavam, outras se sentiam culpadas por serem incapazes de aderir ao sistema. Ou, nas palavras de um editorial da "Childhood", revista para "pais modernos" lançada em 1947: "Mães ficavam sentadas, em sofrimento, ouvindo seus bebês esfomeados gritando por períodos que podiam variar de dez minutos a duas horas, até o maldito relógio marcar o horário determinado".
Desde então, conselhos disciplinadores vêm se alternando com orientações liberais. Para cada Gina Ford que advoga o choro controlado, sempre houve um antídoto liberal --um Dr. Spock ou uma Penelope Leach--, embora às vezes seja difícil distinguir o liberal do prescritivo. O psicólogo britânico John Bowlby, por exemplo, era liberal em relação ao comportamento infantil, mas menos liberal no tocante ao comportamento das mães.
A alta sacerdotisa das prescrições comportamentais para pais é a "Supernanny", figura principal de um programa que aplica a fórmula da TV-realidade à orientação para pais e que, de acordo com pesquisa de 2008, já foi visto por 72% dos pais britânicos. Com seu rol de regras (algumas das quais, como "errou uma vez, caiu fora", soam como algo apropriado para uma cadeia, mais que uma casa de família), o programa sugere soluções rápidas para os problemas que os pais têm na criação de seus filhos, sem levar em conta as particularidades da criança ou de seu pai ou mãe.
MÃE SUFICIENTEMENTE RUIM
Tracey Jensen, professora de estudos culturais e de mídia na Universidade de Newcastle, diz que "Supernanny" inverte Winnicott, oferecendo ao público o espetáculo da "mãe suficientemente ruim", geralmente de classe trabalhadora, que é criticada e levada a envergonhar-se de sua atuação, antes de ser transformada. Jensen assistiu ao programa com um grupo de mães, todas aliviadas porque não eram as práticas delas como mães que estavam sendo examinadas, mas sim as de outra pessoa para a qual elas podiam transferir seus medos e suas preocupações. Mas as mães também se irritaram com o programa, sentindo-se incomodadas com o julgamento e a humilhação aos quais são submetidos as mães que aparecem no programa. Seriados como esse fomentam a própria ansiedade que afirmam acalmar, substituindo o pensar e o sentir por "treinamento".
Enquanto as ideias de cada era sucessiva sobre a maternidade têm uma dimensão política e econômica, a proliferação de manuais e programas para pais, como "Supernanny", assinala outra coisa: um pânico moral sobre o papel dos pais, algo que alimenta a narrativa de um "Reino Unido falido" em que a atuação "falha" dos pais é a causa de tudo, desde a obesidade até o fracasso escolar e o divórcio. Diz Jensen: "A ideia de que estamos passando por uma crise de 'paternagem' é uma narrativa muito comum.
Existe nela muito de saudosismo, incluindo a noção de que nossos pais souberam como nos educar e nossos avós souberam educar nossos pais", apesar de todas as evidências indicarem que os pais de hoje em dia passam mais tempo com seus filhos e dão mais atenção a eles que os de gerações anteriores. Deixar crianças sem supervisão, algo que era comum e corriqueiro na década de 1960, hoje é visto como sinal de descuido.
É claro que a "indústria" de conselhos para pais não tem apenas ideias, mas também produtos para vender. É possível comprar até mesmo um "cantinho da disciplina", ou "Time Out Pad" --resolvendo dilemas de educação dos filhos através do consumo. Mas, mesmo que você se esforce para resistir às mensagens dos programas como "Supernanny", diz Jensen, eles criam um sistema de autovigilância que leva as mães a examinarem cada uma de suas decisões, gerando ainda mais ansiedade nelas.
E o que dizer de Mumsnet --o site não tornou obsoleto o especialista em aconselhamento de pais? Muitas pessoas que postam mensagens regularmente no mural aplaudem o apoio recebido de outras mães que nunca conheceram pessoalmente; neste aspecto, o site se parece não tanto com um manual de conselhos para pais, mas como versão virtual de um encontro informal de mães em torno de um café ou na rua. Mas, como é o caso de qualquer site, já houve também acusações de críticas acirradas e bullying.
Na melhor das hipóteses o Mumsnet é uma fonte de informações, aberta 24 horas por dia, de 1 milhão de irmãs mais velhas; na pior, ele traz 1 milhão de pessoas que têm certeza de terem a resposta. Esta democratização do conhecimento permite que mães contestem os conselhos profissionais de especialistas, algo que Jensen vê como mudança bem-vinda no equilíbrio de poder, mas uma mudança que tem o potencial de produzir ansiedade em níveis exponenciais.
A era em que as mães educavam seus filhos com naturalidade, sem refletirem muito sobre o que faziam, parece ter acabado, pelo menos por enquanto. O mantra repetido por muitos dos gurus atuais dessa área é "confie em seus instintos" --apenas, é claro, depois de ter comprado o livro ou o DVD do guru em questão, autorizando você a confiar. Mas a verdade é que Winnicott também ocupava posição um pouco contraditória, sendo pediatra e psicanalista que endossava as mães como especialistas na criação de seus filhos.
A psicoterapeuta Naomi Stadlen, autora de "What Mothers Do - Especially When it Looks Like Nothing" (O que fazem as mães --especialmente quando parece não ser nada), argumenta que as mães passam o dia inteiro ouvindo seus filhos, mas que, com frequência, elas próprias não são ouvidas. Ela sugere que as mães só se tornam dogmáticas ou autoritárias quando se sentem encurraladas ou inseguras. Isso, sim, parece uma explicação redutora de ansiedade, algo com que Winnicott teria concordado inteiramente.
Tradução de CLARA ALLAIN
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