Escolas libanesas oferecem esperança a crianças sírias refugiadas
"A despeito do sofrimento, as crianças têm capacidade de recuperação espantosa", diz a Unicef. Algumas das 400 mil crianças sírias refugiadas no Líbano voltam à escola
A cada manhã, às 8h, Ahmed se levanta do cobertor em que dorme no chão e caminha cerca de 1,5 quilômetro para o turno diurno. Às vezes suas duas irmãs o acompanham. Mais crianças se unem a ele vindas das plantações de batatas e barracas próximas, a caminho de um dos três turnos diários de aulas na escola. Uma segunda leva de crianças, carregando grandes mochilas azuis, surge ao meio-dia, e mais uma no final da tarde.
Ahmed em geral é recebido com um grande abraço pela assistente social libanesa, Maria, que nos últimos dois anos vem trabalhando parte como assistente social, parte como guardiã de disciplina e, com muita frequência, como figura materna para ele e as demais crianças sírias que estudam nessa escola improvisada, no coração do vale do Bekaa.
Todas as crianças são refugiadas, a maioria perdeu pelo menos um dos pais, e cada uma delas tem uma história de privações e perdas a contar. Mas tudo parece ser esquecido por algumas horas nessa escola entre plantações e barracas, onde os filhos da guerra vêm para aprender.
A guerra civil da Síria vem oprimindo as crianças do país da mesma maneira que mata os adultos. As 400 mil crianças hoje refugiadas no Líbano representam uma geração perdida; muitas fugiram para cá e há três anos não recebem educação. A pobreza não é seu único obstáculo. Até recentemente, era quase impossível matricular refugiados sírios em escolas do Líbano, e dar a essas crianças qualquer forma de educação era quase tão difícil.
As coisas estão mudando lentamente, para alguns. Desde o começo do ano, o governo libanês vem permitindo turnos duplos nas escolas primárias do Estado, o que significa que as crianças refugiadas podem assistir aulas no segundo turno de algumas escolas. Os sírios que se matriculam no sistema libanês de educação recebem credenciais formais caso se formem. Mas nem todas as crianças refugiadas têm a mesma sorte.
Escolas como a de Ahmed são consideradas informais e o governo não as reconhece.
Professores sírios podem lecionar nelas, mas devem respeitar o currículo libanês e, no final do ano, o progresso das crianças não é reconhecido. Isso significa que elas não podem avançar para o ensino secundário e nem ser aceitas pelo sistema estatal de educação.
Para os ávidos alunos desta escola, porém, isso claramente importa pouco. Um grupo de crianças de entre cinco e oito anos de idade está sentado em torno de uma mesa enquanto o professor, um empresário de Homs que perdeu sua casa e seu ganha pão dois anos atrás, as ensina a pintar.
"A vida era diferente antes disso", ele diz, "Mas encontrei dignidade na terapia da arte. Amo essas crianças".
As crianças contemplam em silêncio enquanto ele desenha pequenos gansos brancos sobre um painel de madeira. Depois, elas todas reproduzem o traço do professor –incluindo Fatima, cuja mãe morreu em uma tempestade de inverno quatro anos atrás e que, como Ahmed, recebe atenção adicional de Maria, que parece estar sempre por perto.
As crianças são tão entusiasmadas com o aprendizado que a escola ocasionalmente opera em turno triplo.
Os alunos muitas vezes são recebidos por um contador de histórias tradicional. Usando um manto e um chapéu vermelho conhecido como "tarboush", seu papel é o de manter a conexão entre as crianças e a terra que perderam do outro lado da fronteira. "Ele fala sobre as ruas, castelos, rios e mercados", diz Maria. "As crianças adoram. E também lhes damos muito apoio psicossocial para ajudá-las a amar seu novo país".
O contador de histórias também desempenha outro papel, muitas vezes deslizando para complicadas questões de história moderna e geografia. Até mesmo os alunos de escola primária estão bem cientes de que determinar quem fez o que no Levante, antes da guerra, é um assunto espinhoso. Desde março de 2011, a narrativa vem sendo contestada com amargura ainda maior.
O contador de histórias e o professor recebem cerca de US$ 6 por hora de trabalho. A maioria vive entre os alunos, em campos informais de refugiados espalhados pela área. Ahmed vive em um desses campos com seus cinco irmãos. O mais velho, Nimr, 15, está funcionando como chefe da família e é o principal responsável por cuidar de Kamel, que já não é o mesmo desde que removeu o corpo da mãe dos escombros da casa da família em Idblib, no começo do ano passado.
Pouco mais tarde, o pai das crianças, Mohammed, levou os cinco filhos até a fronteira do Líbano, se despediu e as deixou lá.
Elas não recebem notícias sobre ele desde então, e o pouco dinheiro que tinham para alugar uma barraca e comprar comida acabou faz tempo.
"Fugimos dos problemas mas eles nos seguiram", diz Nimr, agachado na barraca que ele agora divide com sua mulher, Fatima, 15. "Teria sido melhor se tivéssemos todos morrido com minha mãe", ele diz. A família de Fatima, que vive no campo, ajudou os jovens órfãos, construindo um piso de cimento para a barraca e lhes dando comida.
Kamel abana a cabeça em concordância mas mantêm o silêncio –seu olhar permanentemente fixo na distância. "Não sinto estar à altura dessa responsabilidade", diz Nimr apontando para os irmãos. "Não tenho como alimentá-los". Ele mostra uma caderneta na qual anota suas dívidas –uma longa lista que ele não tem a menor possibilidade de pagar.
Sua irmã mais nova, Hala, está sentada ao seu lado, irrequieta. Ela usa um chapéu para cobrir o pouco cabelo que lhe resta; o resto do cabelo caiu nos últimos meses. Hala, 11, ia à escola com Ahmed, mas sofria bullying por causa de sua aparência e comportamento. Seus problemas não são tão visíveis quanto no caso de Kamel, mas ainda assim se pode percebê-los. Hala também corre na direção de Maria quando esta chega à barraca, agarrando-se à perna da mãe substituta que está tentando convencê-la a voltar à escola.
"Muitas dessas crianças sofreram demais", diz Maria. "As histórias que contam são dilacerantes. Todas elas".
A escala do sofrimento que as crianças sírias enfrentam é reflexo de uma sociedade em declínio terminal. Mais de 150 mil pessoas foram mortas desde que começou a guerra, e mais de metade dos 22 milhões de habitantes do país estão fora de suas casas; pelo 6,5 milhões deles são refugiados internos, e quase três milhões chegaram aos vizinhos Líbano, Turquia, Jordânia e Iraque, onde sobreviver importa mais do que aprender.
Mesmo assim, o medo de uma geração perdida é um tema cada vez mais discutido pelas organizações assistenciais que estão tendo mais sorte em ajudar comunidades vulneráveis no exílio do que àqueles que ficaram para trás.
"Precisamos evitar a perda de toda uma geração de crianças sírias. Dar-lhes oportunidades de aprender, desenvolver suas capacidades e curar as feridas do conflito é vital para o futuro dessas crianças e para a Síria", disse um porta-voz da Unicef.
"Crianças que fugiram da Síria para o Líbano viram e experimentaram coisas pelas quais nenhuma criança deveria ter passado. Mas a despeito do sofrimento as crianças têm uma notável capacidade de cura e recuperação. Elas querem aprender –querem um futuro melhor", afirma a organização.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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