A memória como esporte radical
Torneio de Memória Extrema opõe recordistas e revela seus métodos
A última partida do torneio tinha todos os elementos de um duelo clássico, opondo estilo e astúcia, rapidez e determinação, e o maior virtuoso mundial das cartas ao maior mago dos números no planeta.
Não era exatamente Muhammad Ali contra Joe Frazier ou Maria Sharapova contra Serena Williams, mas o duelo atendeu a todas as expectativas da plateia de cerca de 100 pessoas no último mês de abril. O objetivo delas ao comparecer ao primeiro Torneio de Memória Extrema, ou XMT, era acompanhar uma disputa de memória em ritmo acelerado e com ajuda digital, e foi isso o que viram.
A disputa, uma colaboração incomum entre a indústria e cientistas da academia, envolvia partidas de um minuto de duração entre 16 "atletas da memória" de primeira classe, vindos de todo o mundo, em um estilo de mata-mata semelhante ao da Copa do Mundo. O grande prêmio para o vencedor era de US$ 20 mil; e os potenciais benefícios científicos do experimento também eram grandes.
Sandy Huffaker - 26.abr.2014/The New York Times | ||
Uma tela mostra as pontuações dos competidores no Torneio de Memória Extrema |
Um dos patrocinadores do torneio, a Dart NeuroScience, está trabalhando no desenvolvimento de remédios para melhorar as capacidades cognitivas. O outro, a Universidade Washington, em St. Louis, enviou uma equipe de pesquisa com uma bateria de testes cognitivos a fim de determinar o que, se alguma coisa, distingue os atletas da memória das pessoas comuns. As pesquisas anteriores eram esparsas e não tinham resultados conclusivos.
No entanto, enquanto os dois finalistas, ambos alemães, se preparavam para o duelo final –Simon Reinhard, um advogado que detém o recorde mundial na memorização de cartas (um baralho inteiro em 21,9 segundos) e Johannes Mallow, 32, professor que detém o recorde de memorização de dígitos (501 em cinco minutos)– o grupo da universidade já tinha uma constatação preliminar que não parecia óbvia.
"Observamos que uma das maiores diferenças entre os atletas da memória e as demais pessoas", disse Henry Roediger, o psicólogo que liderava a equipe de pesquisa, "está em uma capacidade cognitiva que não é uma medida direta de memória, mas sim um indicador de atenção".
A técnica que os concorrentes empregam não é mistério.
Sandy Huffaker - 26.abr.2014/The New York Times | ||
Johannes Mallow (esq.) e Gunther Karsten se preparam para competir |
Há muito tempo os seres humanos vêm executando feitos de memória, memorizando o número pi por centenas de casas decimais, ou poemas fenomenalmente longos, ou pares de palavras. A maioria dessas pessoas armazena o material em um chamado "palácio da memória", associando os números, palavras e cartas a imagens específicas que já estão memorizadas; em seguida elas colocam mentalmente os pares associados em um lugar que lhes seja familiar, como os cômodos da casa em que viveram na infância ou as estações de uma linha de metrô.
O poeta grego Simonides de Ceos leva o crédito pela primeira descrição desse método, no século 5 a.C., e ele também foi descrito vividamente em muitos livros populares, mais recentemente em "A Arte e a Ciência de Memorizar Tudo" (Nova Fronteira), de Joshua Foer.
Cada concorrente tem sua variação pessoal do método. "Quando vejo o oito de ouros e a rainha de espadas, surge a imagem mental de um banheiro e do meu amigo Guy Plowman", diz Ben Pridmore, 37, contador em Derby, Inglaterra, e ex-campeão de memória. "Depois coloco essas imagens na High Street de Cambridge, uma rua que conheço muito bem".
À medida que essas imagens de acumulam durante a memorização, elas vão contando uma história cada vez mais bizarra, mas ainda assim memorável. "Muitas vezes uso cenas de filmes como locações", diz James Paterson, 32, professor de psicologia em uma escola de segundo grau em Ascot, perto de Londres, e participante de torneios mundiais de memória. "No filme 'Gladiador', que eu uso, há uma cena na qual Russell Crowe está caminhando por um campo de batalha, inspecionando soldados e armas".
Paterson usa super-heróis para representar combinações de letras e números. "Posso usar o Batman –uma de minhas imagens– para o papel de Russell Crowe, outra pessoa para o papel do cavalo, e assim por diante".
O material que os participantes tentam memorizar se enquadra em diversas categorias padronizadas. Maços de cartas em ordem aleatória. Palavras aleatórias. Nomes combinados a rostos. E números, quer binários (uns e zeros), quer números inteiros. E eles têm um tempo determinado –um minuto no torneio em questão, até uma hora em outros eventos– para tentar reproduzir o máximo possível de cartas, palavras ou dígitos na ordem apresentada.
De vez em quando um participante se vangloria online de ter descoberto um método completamente novo, e surge em uma competição para demonstrá-lo.
"É fácil identificar essas pessoas, porque elas ficam em último lugar ou perto disso", diz outro participante de primeira linha dos torneios de memória, o alemão Boris Konrad, 29, pesquisador de pós-doutorado em neurociência. "Todo mundo aqui usa esse tipo de técnica".
Qualquer pessoa pode aprender a construir um palácio da memória, dizem pesquisadores, e com a prática lembrar muito mais detalhes do que antes sobre um determinado assunto. A técnica é acessível a ponto de permitir que pré-adolescentes a adquiram rapidamente, e Paterson a integrou às suas aulas.
"Tenho um aluno, por exemplo, que não tem realmente interesse algum pelos temas acadêmicos mas conhece bem a Premier League –todos os times de futebol, todos os jogadores", ele conta. "Estou trabalhando com ele, e o aluno está usando esse conhecimento como arcabouço para ajudá-lo a recordar o que aprende na classe."
ESPECIALISTAS EM ESQUECIMENTO
Os participantes reunidos em San Diego para o XMT não são amadores, porém. Trata-se de um grupo de primeira classe, um clube de elite formado por pessoas inteligentes que, como bons "nerds", têm imenso interesse em armazenar fatos, e se esforçam muito para isso.
Em seu estudo de doutorado sobre 30 atletas da memória de primeira linha (em sua maioria alemães, porque o país abriga a maior concentração de praticantes desse tipo de técnica, já que oferece o maior número de competições), Konrad constatou fatos: QI médio, 130. Tempo médio de estudo: de mil a duas mil horas, e mais. Os principais concorrentes todos usam alguma variação do sistema de palácios da memória, que eles testam, retestam e alteram.
"Comecei com um sistema próprio, mas agora uso o dele", diz Annalena Fischer, 20, apontando para o namorado, Christian Schäfer, 22, a quem conheceu em uma competição de memória em 2010, na Alemanha. "Mas não uso os atletas de corrida de longa distância que ele usa; não conheço nada sobre o assunto". Os dois são estudantes avançados de ciências, e participantes do estudo de Konrad.
Uma das constatações da Universidade Washington é previsível, se bem que ainda preliminar. Os atletas da memória apresentam desempenho muito forte em testes de memória funcional, o caderno de rascunhos mental que serve como lista de compras de informações que preservamos na memória apesar das distrações.
Uma maneira de medir a memória funcional é pedir que os participantes do teste resolvam uma lista de equações (5+4=X, 8+9=Y, 7+2=Z, e assim por diante), enquanto guardam na memória o número central (4, 9 e 2, no exemplo acima). Os atletas da memória de primeira linha em geral conseguem guardar sete números, o mais alto resultado no teste que os pesquisadores utilizam; a média entre os estudantes universitários é de dois.
"E os universitários tendem a ser bons nessa tarefa", diz o Dr. Roediger, coautor de "Make It Stick: The Science of Successful Learning" (Harvard University Press), um livro recentemente lançado sobre técnicas de aprendizado. "O que eu gostaria de fazer seria estender a série para, digamos, 21 números, a fim de verificar até onde podem ir os atletas da memória".
Mas essa constatação desperta uma nova questão: por que os palácios da memória dos participantes nunca ficam lotados? Os jogadores em geral contam com muitos locais para armazenar os fatos estudados, mas eles treinam e competem repetidamente. Utilizam e reutilizam a mesma estrutura de armazenagem centenas de vezes, e as novas imagens parecem se sobrepor às antigas –e virtualmente sem erros.
"Quando você memoriza as palavras, cartas ou o que quer que seja, essa memória se vai depois que você reporta as lembranças", diz Paterson.
Muitos participantes dizem o mesmo: quando um torneio acaba, os números, palavras e fatos memorizados se vão. Mas essa é uma área sobre a qual a percepção deles é menos precisa.
Em seus testes, iniciados no ano passado, a equipe da Universidade Washington aplicou aos atletas da memória testes de surpresa sobre material "velho" –listas de palavras que eles haviam memorizado para disputas no dia anterior. No segundo dia, eles recordam em média três quartos das palavras memorizadas para o primeiro dia (os universitários usados como grupo de controle recordavam menos de 5%). Ou seja, a despeito do que dizem os concorrentes, o material não desaparece; longe disso.
Mas para instalar uma nova "história" e as imagens que a acompanham em seu palácio da memória, um atleta da memória precisa eliminar em sua íntegra a história anterior. O mesmo processo ocorre quando mudamos uma senha: a antiga precisa ser suprimida, para que não interfira com a nova.
Um termo para essa capacidade é "controle de atenção", e os psicólogos vêm medindo esse atributo há anos, por meio de testes padronizados. No mais conhecido deles, o teste de Stroop, as pessoas veem palavras que passam rapidamente pela tela de um computador e devem identificar a cor da palavra. A resposta é quase sempre instantânea quando a palavra e a cor são a mesma –"vermelho" exibido em vermelho–, mas mais lenta quando existe descompasso, ou seja "vermelho" exibido em azul.
"Os atletas da memória são em média um pouco mais velhos do que os universitários, e a expectativa seria a de que se saíssem um pouco pior, porque sabemos que essa capacidade cai com a idade", diz Mary Pyc, psicóloga da Universidade Washington que, com Kathleen McDermott e David Balota, completa a equipe de pesquisa. "Mas na verdade eles se saem melhor", mantendo o foco nas cores e desconsiderando as palavras. Especialistas externos informados sobre o trabalho dizem que é provável que as constatações sejam comprovadas, dado o que se conhece sobre a memória.
"Embora o controle de atenção não seja um indicador direto de memória, sabemos que certamente serve à memória", disse Zachary Hambrick, psicólogo da Universidade Estadual do Michigan. A capacidade é crucial para competições de memória, ele acrescenta, "e é provável que tenha um componente genético, dado o que conhecemos sobre o conhecimento especializado".
Em resumo, os campeões de memória não são apenas excepcionais em recordar, mas especialistas em esquecer. Para expressar de outro modo, os concorrentes tropeçam não por lembrar de menos, mas por lembrar demais. A nova pesquisa sobre memória extrema sugere que lembrar e esquecer não são necessariamente relacionados da maneira aparente, ou seja, um como inimigo do outro.
O DUELO FINAL
Tudo isso parecia acadêmico quanto Reinhard e Mallow se acomodaram em suas cadeiras para o duelo ao crepúsculo (bem, ao menos para o duelo vespertino), na decisão do torneio em um domingo recente. Os dois são bons amigos, e viajam e treinam juntos. Mas o momento era de seriedade, uma série melhor de nove que valeria um polpudo cheque ao ganhador.
"Veja, há torneios de soletrar, pôquer na televisão, concursos de quem come mais cachorros quentes –os torneios de memória deveriam ser populares; memória é um assunto que fascina a todos", disse o mestre de cerimônias, Nelson Dellis, 30, campeão norte-americano da modalidade, que persuadiu os executivos da Dart NeuroScience a co-patrocinar o evento e concebeu o formato da disputa.
Para atrair espectadores, Dellis, consultor radicado em Miami, montou telões que mostravam todos os movimentos dos participantes, como nos torneios televisivos de pôquer.
A primeira categoria era a de palavras. Os dois estudaram 50 delas, em seu alemão natal, com prazo de apenas um minuto. Os segundos voavam enquanto os dois começaram a digitar as palavras em seus computadores, que as projetavam nos telões para que a audiência visse. Reinhard, de preto, não parava de se mexer, se sacudindo na cadeira, se contorcendo para cá e para lá, como se estivesse visitando fisicamente o seu palácio da memória; ele conquistou a liderança inicial, com 43 palavras corretas quando o prazo acabou.
Mallow, que só tinha 16 palavras na tela, parecia quase meditativo, digitando em seu computador em estilo que poderia ser descrito como plácido. Estava acostumado a começar em desvantagem, tendo se recuperado de uma desvantagem de três a zero nas semifinais contra o atual campeão mundial, um menino prodígio sueco chamado Jonas von Essen. Mallow, embora às vezes comece devagar, costuma terminar como Usain Bolt.
Não foi o que aconteceu desta vez. Depois de ser derrotado no teste de palavras, Mallow venceu na categoria números, mas na disputa de cartas Reinhard foi rápido e meticuloso, ordenando as cartas na ordem memorizada em praticamente tempo nenhum, na tela de seu computador. Depois ele venceu na categoria nomes e com isso venceu a partida e o torneio. A multidão soltou a respiração presa, e Reinhard se levantou de um salto, socando o ar e relaxando a cabeça com uma expressão de alívio. "Estou feliz", ele disse para o público. "Feliz –e exausto".
Para resumir, foi um final de semana que nenhum dos participantes –não importa quais sejam seus resultados no teste de Stroop– deve esquecer.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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