No Maláui, pais buscam manter suas filhas na escola
Sentadas em cadeiras de plástico sob a sombra parcial de uma das duas enormes acácias do pátio da escola, as mães estão contando com a ajuda dos dedos.
Suas filhas filhos já podem ter passado muito da matemática básica, tendo chegado à escola secundária Likwenu, mas estas mães, por mais que sejam espertas, têm pouca experiência com a aritmética formal –raramente há dinheiro a ser contado.
Finalmente elas chegam a um acordo murmurado, e Molley Kalino, líder do grupo de mães que dão apoio a esta escola rural no sul do Maláui, é quem fala: "Num ano bom, um campo pequeno rende dez sacos de milho de 50 kg –seis ou sete em um ano ruim."
"O milho é vendido por 5.000 kwachas (R$33,3) o saco. A escola custa 5.500 kwachas (R$37 reais) por quadrimestre e o uniforme sai por 4.000 kwachas (R$26,6)." Nem todo o milho pode ser vendido –a família precisa comer–, e há também o custo do fertilizante, necessário para enriquecer o solo pobre e exaurido.
Mark Read | ||
Limbani Enock com sua tia e avó no Maláui |
Quando se examinam a receita e as despesas das famílias, o que surpreende é que elas consigam sequer sobreviver. Kalino explica: "Você faz o que pode, aceita qualquer trabalho que apareça pela frente, um dia aqui e outro acolá. Você cuida da plantação sempre que consegue e cuida das crianças, para que fiquem limpas e bem alimentadas."
Uma refeição apenas por dia é normal, e com os estômagos vazios o trabalho em casa e no campo é duríssimo. Tudo isso torna ainda mais extraordinário o que está acontecendo aqui. Uma mudança radical está tomando conta das escolas espalhadas por esta região. As comunidades estão revertendo os altíssimos índices de evasão escolar que tradicionalmente mantiveram a população rural mergulhada na pobreza, especialmente no caso das meninas. Várias escolas primárias hoje ostentam índice zero de evasão escolar, sendo que no passado era de 30%-40%.
Como muitos países em desenvolvimento, o Maláui sempre teve um histórico fraco em matéria de frequência escolar dos alunos e tem um dos maiores índices mundiais de casamento de menores de idade, uma maldição que leva à reprodução dos ciclos de pobreza, desigualdade e problemas de saúde.
Estatísticas mostram que meninas que dão à luz antes dos 15 anos de idade têm chance cinco vezes maior de morrer no parto. Este mês o Maláui demonstrou determinação em mudar, elevando dos 15 para os 18 anos a idade em que uma menina pode se casar com consentimento de seus pais, e o governo está investindo um quarto de sua receita na educação.
Agências externas já vieram ao país para construir escolas, mas, como demonstrou o colapso em 2010 da alardeada academia para meninas idealizada por Madonna, os esforços empreendidos de cima para baixo podem fracassar em meio a mal-entendidos entre a população local e estrangeiros bem-intencionados.
"Lamento muita coisa", falou Molley Kalino. "Abandonei a escola aos 11 anos. Me casei pouco depois disso. Mas com esta garota será diferente", ela disse, abraçando sua filha, Funny. "O argumento econômico é simples: case uma filha e ela irá embora. Faça-a estudar e ela será feliz, independente e poderá ajudar a família."
Funny usa o mesmo uniforme escolar –blusa azul clara e saia bordô– há cinco anos. Pergunto se o uniforme será passado para sua irmã menor. "Não, não, ela vai ficar com ele para usar no dia a dia quando terminar a escola", disse Kalino.
Mesmo que gastas, as roupas são guardadas com cuidado por pessoas cujos bens são tão parcos que a maioria não possui mais que um colchão e vive em casinhas modestas de tijolos, com janelas cobertas por cartolina ou pôsteres eleitorais velhos, no lugar de vidro. Os pôsteres, aliás, são as únicas coisas que os políticos costumam levar à região.
Os moradores são obrigatoriamente frugais, vivendo de um mingau de milho suplementado de vez em quando por verduras que crescem livremente nos campos –áreas de terra vermelha que se convertem de barro em pó, dependendo da estação do ano.
Mas as mulheres aqui na escola não cuidam apenas de suas famílias e terras: duas vezes por semana elas passam uma manhã trabalhando no campo que o chefe local reservou para a escola. Elas cultivam milho para fazer mingau para a escola, porque sabem que é preciso alimentar as crianças para que continuem a ir à escola.
O grupo quer acabar com a ideia de que meninas não estudavam no passado por razões culturais, tradicionais ou religiosas. "Era por causa da pobreza", disse Barbra Makwinja, mãe de seis filhos. "Por isso agora queremos mudar essa situação. Não quero que minhas filhas sejam como eu, que trabalhem na lavoura. Então agora cuidamos do milharal da escola, para alimentar todas as crianças, porque assim elas vão estudar. Nós vamos à escola e conversamos com as meninas quando estão tendo problemas. Explicamos que é importante continuarem a estudar."
Para as alunas também não é fácil. Limbani Enock, 14 anos, está sentada com ar tímido, mexendo nas pontas esgarçadas de uma esteira diante de sua casa, cuja parede de trás se dissolveu nas chuvas que provocaram as enchentes do mês passado que deixaram quase 200 mortos e destruíram milhares de hectares de plantações em todo o país.
Limbani é a primeira pessoa de sua família maior, em seu vilarejo, a chegar à escola secundária. Ela recebeu uma bolsa da organização filantrópica Camfed (Campanha para a Educação Feminina) e espera que ela a leve até a faculdade. Ela acorda todos os dias às 4h, faz suas tarefas domésticas, lavando roupa e varrendo, e então parte para uma caminhada de 90 minutos para chegar a Likwenu às 7h30. Perguntamos se ela às vezes acorda, visualiza a longa caminhada que tem pela frente e pensa "hoje não!". Limbani responde em tom escandalizado: "Nunca!".
As outras crianças gritam quando a veem passar, perguntando "por que você está indo para tão longe?" Garotos correm ao seu lado e a assediam quando ela passa. "Enquanto estou caminhando, geralmente fico pensando na lição escolar e em problemas de matemática", ela diz. "Quero ser contadora."
As escolas de Liwonde vêm chamando os pais de alunos para participar de grupos de mães e pais, incentivar seus filhos a continuar na escola e a tolerar a falta da ajuda de seus filhos no trabalho no campo. Pedem também que façam turnos nos programas de alimentação e invistam o pouco que possuem no futuro.
"Este lugar foi transformado porque os pais puderam entender que educar suas filhas é um investimento. Temos grande orgulho de termos acabado com a evasão escolar. Até o índice de criminalidade caiu, então agora tenho menos a fazer, sou um homem livre!", brincou Nkalo Nkula, o chefe tradicional de dez aldeias no distrito de Liwonde.
O distrito está indo além do que o governo vem fazendo. "Acabamos de acordar alguns estatutos. Estamos multando os homens que engravidam meninas e as obrigam a abandonar a escola", contou Nkula. "Vamos prender e punir esses homens. Nossas meninas precisam estudar. Sim, é muito difícil para a população pagar as mensalidades. O que se planta aqui não é para ser vendido, mas para a subsistência das pessoas, e quem consegue algum dinheiro pensa em matar sua fome. A escola é um luxo. Mas a educação representa o futuro, e o povo está abrindo os olhos. Há tempo de sobra para se casar. Antigamente, ter muitos filhos era uma bênção. Hoje, significa pobreza."
Diferentes organizações humanitárias já passaram por aqui; grupos estrangeiros trouxeram alimentos e clínicas de saúde, com êxitos ou fracassos variados. O que está acontecendo agora parece diferente. A escola Likwenu tem o apoio da Camfed, que está dando apoio a muitas meninas e escolas. A entidade não é dona das escolas nem as administra, mas oferece bolsas de estudo e vem construindo cozinhas para o preparo do tão importante mingau de milho. Comitês de moradores locais redigem listas das alunas que mais merecem as bolsas de estudo.
Setenta alunas da escola Likwenu recebem apoio da Camfed, que assumiu o compromisso de um relacionamento de longo prazo com elas, tanto que exige que as meninas se comprometam a fazer parte de um ciclo no qual alunas que completam o ensino médio voltam à escola mais tarde para ser mentoras de meninas menores.
Três moças de 19 anos –Mervice Chombuk, Fatsileni Jafali e Asitatu Bamusi– se formaram recentemente na escola Likwenu e receberam apoio da Camfed. Elas voltaram à escola, conforme o previsto, para conversar com as alunas e "contribuir com algo", segundo Chombuk.
"Digo às meninas: 'Não se sinta tentada a abandonar a escola, não dê ouvidos aos garotos que gritam com você e lhe dizem que você nunca vai se casar'", ela explicou. "Continuar na escola é um desafio. Desistir é fácil, mas você vai se arrepender disso pelo resto da vida."
As três são as primeiras mulheres de suas respectivas famílias a criar e administrar suas próprias microempresas. Bamusi produz e vende "toba", uma cerveja doce e não alcoólica; Jafali tem uma barraca de lanches e pretende abrir um negócio de venda de roupas de segunda mão, e Chombuk faz e vende bolinhos de banana. Elas têm ambições e grandes planos. Insistem que não vão se casar antes de chegar à metade da casa dos 20 anos, dez anos depois da idade em que suas mães se casaram.
Pode parecer um passo pequeno, mas na realidade é enorme. É claro que elas ainda são vulneráveis, ainda são pobres, mas, como disse Jafali com orgulho: "Eu me sustento sozinho. Sou independente e não sou lavradora. Ajudo minha família. Hoje a mulher pode ser policial, pode ser soldada. Acho que a escola foi apenas o começo para mim."
Tradução de CLARA ALLAIN
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