Diário de Pequim - Êxodo estrangeiro
Nos rankings das melhores cidades do mundo para se viver, Pequim costuma ocupar um lugar modesto, no meio da tabela. A imagem internacional da capital chinesa é ainda pior que sua colocação na lista. O governo autoritário, a insegurança alimentar e, principalmente, a poluição, estão entre os motivos geralmente citados por estrangeiros que decidem abandonar a cidade.
Apesar da importância crescente da China nos negócios do mundo, duas vezes mais estrangeiros deixaram o país em 2014 do que chegaram, de acordo com a empresa UniGroup, responsável pela mudança de 260 mil famílias pelo mundo a cada ano. A desaceleração da economia chinesa e o clima mais adverso para empresas de fora explicam em parte os números, mas a qualidade de vida claramente é um fator de peso. E não apenas para empresas: várias embaixadas em Pequim estão atualmente com seu quadro incompleto, devido à dificuldade em atrair diplomatas para servir na cidade.
Após dois anos e três meses vivendo na capital chinesa, entro na estatística dos que partem, mas levo uma impressão muito superior de Pequim da que tinha quando cheguei. Minha afeição pela cidade foi construída sobre duas rodas. Faz tempo que a China deixou de ser o "império das bicicletas", porém o veículo continua sendo o melhor guia para descobrir os encantos de Pequim. Nas ciclovias amplas da avenida Changan, que leva à praça da Paz Celestial, ou nas ruas estreitas dos hutongs, o velho casario que guarda o charme da China antiga, pedalar em Pequim é um festival único de sensações.
Nem sempre é uma experiência tranquila. As ciclovias de Pequim são um vale-tudo, por onde circulam todo tipo de veículo de duas e três rodas, motorizados ou não. Na disputa diária por um espaço nesta China sempre em movimento é possível testemunhar em primeira mão o dinamismo da segunda maior economia do mundo, no vai e vem de mercadorias encomendadas online levadas por entregadores em suas motos transformadas em minicaminhões. É preciso estar atento, mas o esforço recompensa.
IMAGEM REABILITADA
Para o visitante estrangeiro que desembarcava na China nos anos 70 e 80, antes do boom econômico, uma das imagens mais marcantes era o mar de bicicletas que dominava as cidades. "Meu campo de visão se volta para as milhares de bicicletas cruzando na frente dos carros. É tanta bicicleta que chegam, no conjunto, a fazer barulho", espanta-se o cartunista Henfil no livro que escreveu sobre sua visita à China, em 1977.
Kim Kyung-Hoon - 11.mai.2015/Reuters | ||
O chinês Li Renjun com sua bicicleta em um hutong de Pequim |
Naquela época, mais de metade da população usava a bicicleta como principal meio de transporte. Com a ascensão econômica do país, a bicicleta caiu no conceito dos chineses, ávidos por deixar para trás o passado de pobreza e entrar no paraíso burguês do carro particular. Hoje, com os altos níveis de poluição do ar e as avenidas entupidas por intermináveis engarrafamentos, a prefeitura de Pequim tenta estimular o uso de bicicletas, reabilitando o antigo símbolo da cidade.
SONS E CHEIROS
O excesso de veículos e buzinas, porém, não foi capaz de apagar as marcas mais profundas da cidade. Em poucos minutos pedalando por Pequim é possível comprovar sua incrível abundância gastronômica, numa sucessão de cheiros de comidas das mais variadas, dos espetinhos de carne ao infame tofu fedido, um teste de fogo até para os paladares mais aventureiros. A comida é uma obsessão dos chineses e sua principal diversão. Os cheiros são acompanhados de sons típicos, como os vendedores de rua que passam batendo sinos e cantando pelos hutongs.
ADEUS
Não é à toa que Pequim concentra a maior comunidade de artistas da China. Apesar do clima mais tenso pela proximidade com o poder (ou talvez também por isso), a produção artística e intelectual mais importante da China é produto de sua capital. Sua vitalidade vai muito além da imagem cinzenta. Após três primaveras em Pequim, despeço-me dessa efervescência, mas deixo uma bicicleta na cidade, por via das dúvidas.
MARCELO NINIO, 49, é correspondente da Folha em Pequim; este é seu último "Diário" da cidade.
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