O novo museu de Washington e a história dos negros, que é a dos EUA
"Não somos um peso para a América, ou uma mancha para a América, ou objeto de piedade e caridade para a América. Nós somos a América", disse o presidente Obama na abertura do aguardado Museu de História Afroamericana, em Washington.
Prestes a deixar a Casa Branca, o que deve acontecer em janeiro, o primeiro presidente negro da história dos EUA teve a sorte de poder inaugurar um projeto que estava havia cem anos em gestação. Mas o fez num momento de tensões raciais inflamadas no país, após novos episódios de violência policial contra negros.
Na cidade dos monumentos, o novo museu ocupa o último terreno vago no National Mall, a esplanada dedicada aos heróis da pátria, e preenche um vazio histórico. Das escadarias do Monumento a Lincoln, de onde Martin Luther King Jr. fez o famoso discurso "Eu Tenho Um Sonho", em 1963, o líder dos direitos civis veria hoje o grandioso cubo de bronze que conta muito de sua luta.
Quando chegou à Presidência, em 2008, Barack Obama carregava a promessa de uma nova era nas relações entre brancos e negros nos EUA, que jamais se libertaram totalmente dos traumas e ressentimentos da escravidão e da segregação. Embora continue popular entre os afroamericanos, a sensação mais comum é a de que, no capítulo relações raciais, seu legado é modesto, com poucas ações diretas.
Quem o defende diz que a recuperação da economia e a ampliação do acesso a serviços de saúde melhoraram a vida dos negros, junto com a população em geral.
MUNDOS À PARTE
Na linha do discurso "somos a América" de Obama, os responsáveis pelo novo museu ressaltaram a importância de incorporar a história dos negros ao panteão dos fundadores da nação. "Para ajudar todos os americanos a entender como foram moldados e se tornaram melhores pela experiência afroamericana", disse o diretor da instituição, Lonnie Bunch.
Porém, mais de meio século após a assinatura da Lei de Direitos Civis de 1964, que proibiu a segregação racial, brancos e negros nos EUA ainda parecem habitar mundos à parte. Um em cada 15 negros está na prisão, em comparação a um em cada 106 brancos. Quase um quarto dos afroamericanos vivem abaixo da linha de pobreza (24%), bem mais do que a média nacional (13,5%).
Também há um fosso entre as visões sobre o problema. Enquanto pipocam pelo país protestos de negros contra a violência policial, pesquisa recente do Instituto Pew indica que 88% dos afroamericanos acham que são necessárias medidas para reduzir a desigualdade racial, enquanto só 53% dos brancos têm a mesma opinião.
ESTRANHO NO NINHO
Os quatro anos de construção do museu deram aos moradores e visitantes de Washington tempo para se acostumar ao que surgiu como um estranho no ninho, uma espécie de templo invertido com escamas de metal em meio ao branco das edificações clássicas do Mall.
Autor do projeto, o arquiteto ganense-britânico David Adjaye disse que as placas de bronze torneado que cobrem o prédio remetem ao trabalho de escravos libertos na Carolina do Sul. Elas foram aplicadas de forma a permitir que os visitantes possam ver o lado de fora através da fachada, numa integração com os monumentos em volta.
"A maioria dos museus no Mall é fechada ao mundo exterior, de forma a levar o visitante a outro mundo", disse Adjaye ao "New York Times". "Eu não queria isso. A experiência de ser negro não é ficção."
MICHAEL JACKSON
O acervo de 37 mil peças foi em parte colhido pelo diretor, Lonnie Bunch, em expedições ao redor do país, em que buscava raridades e também objetos de uso diário, em vendas de bairros e porões de casas antigas.
A exibição começa justamente no porão, mostrando as condições subumanas do tráfico de escravos da África. Evolui para a luta pelos direitos civis, expondo relíquias como um vestido de Rosa Parks, que se tornou um ícone ao se negar a trocar de assento num ônibus segregado.
Chip Somodevilla - 14.set.16/Getty Images/AFP | ||
O vestido de Rosa Parks no Museu de História Afroamericana em Washington |
Por fim, no último andar, Michael Jackson e Ray Charles compõem a constelação de artistas negros que revolucionaram a cultura americana.
MARCELO NINIO, 50, é correspondente da Folha em Washington.
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