Uma conversa com Sharon Jones, furacão soul
RESUMO Sharon Jones, que morreu em novembro, começou na música tardiamente, com mais de 40 anos. Antes, tinha sido agente penitenciária, segurança de banco e "crooner" de casamentos. Em meados da década de 2000, projetou-se em meio ao "revival" do soul sessentista. Documentário seguiu sua luta contra o câncer.
Kelly Joe Garner/Divulgação | ||
A cantora americana Sharon Jones em show |
A estatura diminuta nunca foi empecilho: do alto de seu 1,50 m (ou uns quebrados a mais, vá lá), a cantora americana Sharon Jones, morta há um mês aos 60 anos, era capaz de botar qualquer plateia abaixo, como pôde verificar em duas ocasiões o público brasileiro.
Incansável sobre o palco, onde cantava e dançava freneticamente, ficou conhecida como uma variante de saias de seu maior ídolo, James Brown (1933-2006).
Era a "cantora de voz corajosa, pés rápidos e energia indomável", como resumiu o "New York Times"; ou "a sobrevivente do soul que ajudou a rejuvenescer um gênero clássico", na apologia do "Guardian"; ou ainda "a pessoa mais enérgica nos shows em que a plateia tinha metade da sua idade", segundo a "Rolling Stone".
No dia 18 de novembro, Jones sucumbiu a um câncer no pâncreas, depois de três anos de luta contra a doença. Estava cercada pelos familiares e pelos The Dap-Kings, a big band que a acompanhou por quase duas décadas.
A artista encontrou o sucesso tardiamente, depois de escutar de um produtor que "era muito baixa, muito negra, muito gorda e muito velha para cantar", como lembrou em tantas entrevistas. Antes de soltar o vozeirão nos estúdios, deu expediente como agente carcerária na prisão de Rikers Island, em Nova York, e como segurança de banco –certa vez, chegou de uniforme e armada a uma sessão de gravação em que atuaria como backing vocal.
Já tinha 46 anos quando saiu o seu disco de estreia. "Nunca achei que poderia lançar meu próprio álbum. Mas sempre acreditei que tinha um dom e que alguém um dia me aceitaria pela minha voz, não pela minha aparência", disse, quando conversamos no início de setembro passado, um dia após ela ouvir de seu médico que teria de voltar a tomar uma medicação mais agressiva por conta da recidiva da doença. "Tenho de me manter positiva", repetia.
Caçula de seis irmãos, a cantora nasceu em Augusta (Geórgia), cidade que viu crescer James Brown. Nos anos 1960, ainda criança, mudou-se com a família para Nova York. Como tantas outras intérpretes, ensaiou suas primeiras notas na igreja e cresceu ouvindo soul, R&B e todo o casting da Motown e da Stax (as casas que definiram a música negra americana das décadas de 1960 e 1970).
Já nos anos 1980, burilou seus trinados em bandas de casamento e em "bicos" como backing vocal –sempre longe dos holofotes.
3 EM 1
Sua sorte mudou em 1996, quando cantou com o artista Lee Fields, não por acaso apelidado carinhosamente nos círculos soul de Little JB (em aceno a James Brown). Nessa sessão estava presente o músico e produtor Gabriel Roth. Três backing vocals haviam sido convocadas para a gravação, mas só Jones apareceu, substituindo com facilidade as outras duas e impressionando Roth, que passou a lançar singles da cantora pelo seu selo, o Daptone.
Com instrumentos e equipamentos vintage, eles logo registrariam o primeiro dos seis discos da cantora com os Dap-Kings, do qual Roth é líder, em um estúdio que Jones literalmente construiu com ele –ela se encarregou da fiação elétrica.
O álbum em questão, "Dap Dippin' with Sharon Jones & the Dap-Kings", saiu em 2002 e imediatamente alçou a gravadora do Brooklyn a epicentro de um "revival" do soul febril dos anos 1960 –vale lembrar que foi naquele endereço que outro talento, Charles Bradley, ganhou fama tardiamente.
O trabalho de "arqueologia musical" da Daptone logo chegaria aos ouvidos do produtor inglês Mark Ronson, que convidaria os Dap-Kings a acompanhar uma certa Amy Winehouse em 2006 nas sessões de "Back to Black", o disco que empilhava hits como "Rehab", "Tears Dry on Their Own", "Love Is a Losing Game" e a canção-título.
Jones, por sua vez, seria chamada em 2006 a acompanhar Lou Reed (1942-2013) no show que resgatava "Berlin" (disco dele de 1973). Ali, fez as vezes de backing vocal de luxo, ao lado de Anohni (antes conhecida como Antony Hegarty), que lembrou, na ocasião da morte de Jones, ter aprendido na companhia dela a interpretar composições com mais coragem.
À frente dos Dap-Kings, a irrequieta intérprete cantou amores, desamores, tempos difíceis, a força da mulher, o gospel, o soul e o funk que cresceu escutando. O material foi reunido em álbuns como "100 Days, 100 Nights" (2007) e "I Learned the Hard Way" (2010).
"Sou uma combinação de Aretha Franklin, Tina Turner e Diana Ross", resumira ela, na primeira vez em que conversamos, em 2011, às vésperas de ela embarcar para seu primeiro show no Brasil. Naquele mesmo ano, Prince se contentou em tocar guitarra durante um show de Jones com os Dap-Kings, dobradinha que aos poucos trocou os palcos intimistas de teatros pelos de grandes festivais de música, como Coachella (EUA) e Glastonbury (Inglaterra).
Jones não se satisfez com as plateias afeitas ao soul; foi atrás também das de cinema. Em 2007, contracenou com Denzel Washington em "O Grande Debate". Seis anos depois, fez uma ponta em "O Lobo de Wall Street" (2013), de Martin Scorsese, como uma cantora de casamento.
CÂNCER
Em 2013, às vésperas de a cantora lançar seu quinto álbum, exames detectaram que ela tinha um câncer pancreático.
"Meus olhos começaram a ficar amarelos. Comecei a perder muito peso, não podia comer, emagrecia dois quilos por semana", lembrou, em setembro passado.
Em vez de se recolher, Jones aceitou a sondagem da cineasta Barbara Kopple para registrar seu processo de recuperação. O resultado é o documentário "Miss Sharon Jones!", lançado em julho deste ano nos EUA.
"Meus fãs veriam uma foto minha e perguntariam: 'Por que a Sharon está careca?'. Eles me amam, doente ou não. Por que deveria ficar longe deles?", explicou, sobre ter topado que câmeras a seguissem ao longo do tratamento. "Fico feliz porque só recebi energia positiva deles, que me inspiram a continuar. Não quero ninguém com pena próximo de mim."
No filme, acompanhamos o regresso de Jones a sua Augusta natal e as estações da excruciante via-crúcis contra o câncer (sessões de quimioterapia, cirurgia de remoção da vesícula biliar, de parte do pâncreas e do intestino), mas também o esforço dela em manter algo próximo a uma rotina, com sessões de ginástica e interlúdios de cantoria na igreja (ou, em chave mais prosaica, cenas de pescaria).
A montagem deixa transparecer a apreensão do "entourage" da cantora com seu estado de saúde e com a capacidade dela de honrar compromissos profissionais. "Quando vi o documentário pela primeira vez, percebi os problemas pelos quais minha banda estava passando", disse-me ela. Em uma passagem, um dos músicos dos Dap-Kings conta que um banco lhe havia negado um empréstimo ao saber que Jones estava doente. Sem a cantora, não haveria shows.
Nove meses depois do começo do tratamento, o câncer entrou em remissão. Em janeiro de 2014, Sharon lançou seu quinto álbum, "Give the People What They Want", que lhe rendeu a primeira indicação ao Grammy de melhor disco de R&B ("Se existisse a categoria soul, acho que teria ganhado", diria-me, sem falsa modéstia).
Não demorou para Miss Sharon Jones, agora de cabelos bem curtos, irromper no palco do nova-iorquino Beacon Theater e ser saudada efusivamente por uma plateia que incluía seu médico particular.
"Quando estou no palco, a dor vai embora. Às vezes, ela ainda está lá, mas não importa para mim", descreveu. Em 2015, a artista retornava ao Brasil. "Nunca vou esquecer o carinho dos fãs daí."
Na estreia do documentário, em setembro daquele ano, em Toronto, ela anunciou que o câncer havia voltado. Jones e a banda gravaram um single para a trilha do filme, com o sugestivo título "I'm Still Here" (ainda estou aqui). No mês seguinte, ela lançou seu último álbum com os Dap-Kings ("It's a Holiday Soul Party").
Pano rápido para 8 de novembro de 2016, quando a cantora teve um AVC assistindo à apuração das eleições americanas. Gabriel Roth conta que, bem-humorada, ela culpou Trump pelo incidente.
No dia seguinte, sofreu mais um e parou de falar, mas não de cantar. O baixista contou ao "Los Angeles Times" que Sharon voltou a mover a boca para gemer melodias, sempre de canções gospel, cercada por suas backing vocals e pelos membros da banda, que dedilhavam guitarras. Quando paravam, ela voltava a improvisar canções.
Não parecia assustada ou ansiosa e sorria ao se ver cercada por eles. Não queria parar de cantar.
BRUNA BITTENCOURT, 35, é jornalista.
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