Leia tradução de peça inédita do dramaturgo russo Mikhail Bulgákov
SOBRE O TEXTO O trecho abaixo integra a peça "Os Dias dos Turbin", nunca montada no Brasil. O texto será objeto de leitura encenada na próxima terça-feira (24) no Sesc Consolação, como parte do ciclo "7 Leituras, 7 Autores, 7 Diretores", sobre teatro russo.
*
Elena - O que você disse?
Thalberg - Eu disse: "Lena"!
(pausa)
Thalberg - Lena, agora tenho que fugir.
Elena - Fugir? Para onde?
Thalberg - Para a Alemanha, para Berlim. Hum... Querida, você imagina o que vai ser de mim se o exército russo não derrotar Petliura e ele entrar em Kiev?
Elena - Pode se esconder.
Thalberg - Queridinha, como posso me esconder? Não sou uma agulha. Não tem ninguém na cidade que não me conheça. Esconder o ajudante do ministro de guerra. Não posso, como o senhor Mychlaiévski, acomodar-me sem túnica, no apartamento de outra pessoa. Vão me achar com a maior facilidade.
Elena - Espere! Não entendo... Quer dizer que nós dois temos que fugir?
Thalberg - Essa é a questão: não. Revelou-se agora um quadro terrível. A cidade está cercada de todos os lados, e o único jeito de escapar é o trem do estado-maior alemão. Não aceitam mulheres. Deram-me um lugar, graças a minhas ligações.
Elena - Em outras palavras, você quer partir sozinho?
Thalberg - Minha querida, eu não "quero", mas não posso fazer de outro jeito! Entenda, é uma catástrofe. O trem sai em uma hora e meia. Decida, o mais rápido possível.
Elena - Em uma hora e meia? O mais rápido possível? Então decido: parta.
Thalberg - Você é inteligente. Sempre disse. O que ainda queria dizer? Sim, que você é inteligente! Aliás, já disse isso.
Elena - Quanto tempo vamos ficar separados?
Thalberg - Acho que um mês, ou dois. Só vou aguardar em Berlim o fim de toda essa barafunda e, quando o hétmã voltar...
Elena - E se ele acabar não voltando?
Thalberg - Não pode ser. Mesmo que os alemães deixem a Ucrânia, a Entente vai tomá-la e restaurar o hétmã. A Europa precisa de uma Ucrânia com o hétmã na qualidade de cordão contra os bolcheviques de Moscou. Veja, eu calculei tudo.
Elena - Sim, estou vendo, mas só uma coisa: como é que o hétmã ainda está aqui, estão formando as tropas dele, e você de repente foge, aos olhos de todos. Isso é esperto?
Thalberg - Querida, que ingênuo. Estou lhe contando um segredo – "eu vou fugir" – porque sei que você nunca vai contar isso para ninguém. Coronéis do estado-maior geral não fogem. Eles partem em missão. No bolso, tenho uma missão para Berlim, do ministério do hétmã. Então, nada mal, não?
Elena - Nada mal mesmo. Mas o que será de todos?
Thalberg - Permita-lhe agradecer por me igualar a todos. Não sou "todos".
Elena - Avise os irmãos.
Thalberg - Claro, claro. Em parte, estou até contente por partir sozinho por tanto tempo. Pois assim, no fim das contas, você vai guardar os nosso quartos.
Elena - Vladímir Robértovitch, quem está aqui sãos meus irmãos! Por acaso você acha que eles iriam nos desalojar? Você não tem direito...
Thalberg - Oh, não, não, não... Claro que não... Mas você conhece o provérbio: "Qui va à la chasse, perd sa place". Agora mais um pedido, o último. Aqui, hum... sem mim, é claro, virá esse... Chervínski...
Elena - Ele vem também quando você está.
Thalberg - Infelizmente. Veja, minha cara, não gosto dele.
Elena - Por que, posso saber?
Thalberg - A corte que ele faz a você ficou muito impertinente, e eu acharia desejável... Hum...
Elena - O que você acharia desejável?
Thalberg - Não posso lhe dizer o que. Você é uma mulher inteligente, e perfeitamente instruída. Entende perfeitamente como se portar para não lançar uma sombra sobre o sobrenome Thalberg.
Elena - Está bem... Não lançarei uma sombra sobre o sobrenome Thalberg.
Thalberg - Por que me responde de forma tão seca? Afinal, não estou dizendo que você pode me trair. Sei às mil maravilhas que isso não pode ser.
Elena - Por que você supõe, Vladímir Robértovitch, que isso não pode ser?..
Thalberg - Elena, Elena, Elena! Não a estou reconhecendo. Esses são os frutos do convívio com Mychlaiévski! Uma mulher casada trair!... Quinze para as dez! Estou atrasado!
Elena - Agora vou empacotar...
Thalberg - Querida, nada, nada, só uma maleta, com pouca roupa de baixo. Só que, por Deus, rápido, eu lhe dou um minuto.
Elena - Mesmo assim, despeça-se dos irmãos.
Thalberg - É óbvio, só que veja, estou partindo em missão.
Elena - Aliocha! Aliocha! (Sai correndo.)
Aleksei (entrando) - Sim, sim... Ah, olá, Volódia.
Thalberg - Olá, Aliocha.
Aleksei - Que pressa é essa?
Thalberg - Veja, devo-lhe comunicar uma notícia importante. Hoje à noite, a situação do hétmã ficou muito grave.
Aleksei - Como?
Thalberg - Grave, e muito.
Aleksei - O que acontece?
Thalberg - É muito possível que os alemães não ofereçam ajuda, e que tenhamos que derrotar Petliura com nossas forças.
Aleksei - O que está dizendo?
Thalberg - É bastante provável.
Aleksei - Coisa sórdida... Obrigado por dizer.
Thalberg - Agora, a segunda coisa. Como agora vou partir em missão...
Aleksei - Para onde, se não for segredo?
Thalberg - Para Berlim.
Aleksei - Para onde? Para Berlim?
Thalberg - Sim. Por mais que eu resistisse, não consegui me livrar. Que indecência!
Aleksei - Por quanto tempo, ouso perguntar?
Thalberg - Por dois meses.
Aleksei - Ah, olha só.
Thalberg - Então permita que lhe deseje tudo de bom. Tome conta de Elena. (Estende a mão.)
(Aleksei esconde a mão atrás das costas.)
Thalberg - O que significa isso?
Aleksei - Significa que a sua missão não me agrada.
Thalberg - Coronel Turbin!
Aleksei - Sou todo ouvidos, coronel Thalberg.
Thalberg - Vai responder por isso, senhor irmão de minha esposa.
Aleksei - E quando deseja, senhor Thalberg?
Thalberg - Quando... Cinco para as dez. Quando eu voltar.
Aleksei - Bem, Deus sabe o que terá acontecido quando o senhor voltar!
Thalberg - O senhor... o senhor... Fazia tempo que eu queria falar com o senhor.
Aleksei - Não deixe a esposa nervosa, senhor Thalberg.
Elena (entrando) - De que estavam falando?
Aleksei - De nada, de nada, Lénotchka!
Thalberg - De nada, de nada, querida! Pois bem, até a vista, Aliocha!
Aleksei - Até a vista, Volódia!
*
MIKHAIL BULGÁKOV (1891-1940) foi um escritor e dramaturgo russo admirado por Stálin e censurado pelo governo soviético.
IRINEU FRANCO PERPETUO, 46, é jornalista e tradutor.
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