Zuza Homem de Mello e as tentativas de trocar palavras com Ray Charles

Crédito: Ernesto Papa
Ray Charles durante show no Free Jazz Festival, no Brasil, em 1986

ZUZA HOMEM DE MELLO

Lembro-me nitidamente do concerto de jazz em Nova York em 29 de novembro de 1957.

O programa descomunal anunciava a Big Band de Dizzy Gillespie, seguida dos combos de Sonny Rollins, Chet Baker, Thelonious Monk com John Coltrane e para finalizar, Billie Holiday. Quem abriria a noite era um pianista e cantor em rápida ascensão no estilo rhythm and blues (R&B), que tocava pela primeira vez no Carnegie Hall: Ray Charles.

O estreante Ray deu um show, cantando com seu estranho balanço pendular do tronco, para frente e para trás, soltando um poderoso piano meio blues, meio soul, meio gospel.

Sua voz era arrancada do fundo da alma, um clamor gemido, de chorar de tristeza, de sorrir de alegria. À saída, me vi na calçada da rua 57 em estado de êxtase: eu havia descoberto Ray Charles.

Poucos meses depois, no estúdio da Atlantic Records —onde eu estagiava como técnico de som—, o engenheiro de gravação Tom Dowd recebeu Ray Charles. O cantor —cego desde os 7 anos de idade— subira a escada sozinho e entrara na sala da técnica sem o menor alarde.

Senti um calafrio ao vê-lo de perto. Brotava uma energia, um poder enorme daquele músico negro que só enxergava escuridão. Jamais eu havia experimentado sensação de tamanha intensidade magnética.

Ray conversava com Tom a menos de dois metros. Quem sabe havia uma chance de dizer-lhe como eu o admirava? Hesitei, mas não me atrevi. Se bem que, derrubado pela carga elétrica de sua presença avassaladora, tive essa grande felicidade: mesmo sem estar, estive com Ray Charles.

Anos se passaram e o cantor fez suas primeiras apresentações no Brasil: dois shows com sua Big Band na TV Excelsior, gravados no mesmo dia, 22 de setembro de 1963, com ótima qualidade de som e de imagem em preto e branco. Somente após sua morte foram localizadas, em perfeito estado, as fitas em videotape exigidas no contrato por seu empresário Joe Adams.

Mal terminada a gravação, Adams recolheu os pesados carretéis Ampex e levou-os na mala, sem deixar cópia ou vestígio na emissora. É o único documento existente de uma performance de Ray, na véspera de completar 33 anos.

No final de agosto de 1986, a produção do 2º Free Jazz Festival teve que rebolar para localizar um modelo de piano Steinway, como requeria Ray Charles. Como curador do festival, dessa vez eu certamente conseguiria dizer-lhe como sua música me tocava fundo.

A produção avisou que ele só sairia do hotel rumo ao teatro após ser comunicado que a orquestra já tinha atacado no palco. Eu e a produtora Monique Gardenberg corremos para a entrada de artistas do Anhembi assim que recebemos o aviso: Ray Charles está chegando.

De repente, lá vem ele de sobretudo. Foi rápido: passou pertinho da gente, sua aura imantava a todos, emoção indescritível. Mais uma vez, vi Ray Charles de perto, mas nenhuma palavra foi possível.

Sua última visita ao Brasil deu-se em junho de 1997, na série Dupont Basic Sounds. Uma vez mais a produção teve que se virar: o empresário Joe Adams reprovou o piano alugado, preferindo o teclado eletrônico que o artista trouxera. E poucas horas antes do concerto, deixou todo mundo com o coração na boca: "Com essa banqueta não tem show" —a transportadora, por engano, levara embora com o piano a pesadíssima banqueta de Ray Charles, que lhe dava segurança ao cantar.

Pedro Bianco, produtor da turnê, teve que recorrer à polícia para arrombar o depósito em São Bernardo, voando de volta para o antigo Palace, em Moema, com a banqueta. Deu outro show inesquecível, com o público cantando alto "Georgia on My Mind" e forçando o cantor a repeti-la três vezes.

A temporada incluía um show em Brasília e eu, como diretor artístico, iria naquele também. Em São Paulo, na sala de embarque, avistei Ray Charles sozinho com seu sobretudo de pelo de camelo. Finalmente a oportunidade.

"Vou começar dizendo que estava no Carnegie Hall e agradecer pelo bem que ele faz para a humanidade", pensei. Sentei-me ao seu lado enquanto ele folheava um caderno de partituras em braile. E ali permaneci, ao lado do gênio sagrado da música, por mais de 20 minutos. Paralisado, não consegui falar. Nem uma palavra com Ray Charles.

ZUZA HOMEM DE MELLO, 84, jornalista, escritor e musicólogo, acaba de lançar o livro "Copacabana - A Trajetória do Samba-Canção" (Ed. 34/Edições Sesc).

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