Descrição de chapéu Financial Times Agrofolha genética

Secas e guerras mudam visão sobre edição genética de alimentos na Europa

Tecnologia é diferente da utilizada em transgênicos; entenda os prós e contras

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Andy Bounds Emiko Terazono
Bruxelas e Londres | Financial Times

Os consumidores europeus de fast food exigem batatas fritas longas e retas, o que significa que as batatas europeias precisam ser grandes. Mas nos últimos meses o clima da Europa teve outras ideias.

Uma seca intensa obrigou o agricultor holandês Hendrik Jan ten Cate a borrifar água de um canal local sobre suas batatas para evitar que encolhessem.

"A irrigação é muito cara. Cerca de 10% dos meus custos foram com água", diz ele. "Os agricultores que não puderam irrigar perderam metade da colheita."

Mercado em Atlanta, na Geórgia - Elijah Nouvelage - 19.out.2022/AFP

Os outros gastos de Ten Cate aumentaram 25%, diz ele, por causa do alto preço do gás. Combustível para tratores, fertilizantes e pesticidas também ficaram mais caros.

Ele só consegue ver uma resposta se os europeus ainda quiserem comer alimentos produzidos em seus países: culturas geneticamente editadas, que são mais resistentes à seca e ao calor extremo.

"As mudanças climáticas estão chegando mais rápido do que estamos desenvolvendo novas culturas", diz ele. "Precisamos de novas técnicas. Há um grande risco para a produção de alimentos na Europa."

A edição genética é uma forma de engenharia em que os genes podem ser excluídos ou adicionados na mesma espécie ou em espécies semelhantes. É diferente da modificação genética, que introduz DNA de espécies estranhas (resultando nos alimentos conhecidos como transgênicos).

Os proponentes argumentam que a edição genética é o mesmo que o melhoramento convencional de plantas, mas acelerado, com maior precisão. "Se você introduzir um gene estranho, é um OGM [transgênico]. Se você apenas mudar as letras genéticas dentro do organismo, é como o convencional", diz Petra Jorasch, do grupo de lobby Euroseeds. "É também o que se faz com métodos convencionais de reprodução."

Esse não é o atual entendimento do continente. O Tribunal de Justiça Europeu, a mais elevada corte da UE, decidiu em 2018 que a edição genética deveria estar sob a mesma regulamentação dos OGMs, na qual os riscos potenciais são priorizados na avaliação.

Quando a tecnologia de OGMs chegou à Europa, nos anos 2000, encontrou forte oposição em uma região que se orgulha da qualidade e procedência de seus alimentos.

Os produtos foram rotulados como "frankenfoods" e os campos de testes foram atacados por manifestantes. Os reguladores endureceram tanto as regras que apenas um tipo de trigo geneticamente modificado já foi cultivado na União Europeia (embora dezenas de culturas estejam hoje autorizadas para importação, principalmente para ração animal).

Agora, a visão sobre edição genética na Europa está mudando. Em setembro, os ministros da Agricultura dos 27 Estados membros instaram Bruxelas a acelerar o reexame da regulamentação dos OGMs. No mês seguinte, a Comissão Europeia confirmou que emitiria uma proposta para facilitar a regulamentação de algumas tecnologias de edição genética no segundo trimestre de 2023.

Os movimentos ocorrem durante um ano em que a seca generalizada reduziu as colheitas em toda a Europa, com a Espanha perdendo a metade de sua safra de azeitonas. A Guerra da Ucrânia reduziu as exportações de um país apelidado de celeiro da Europa. A seca e o conflito, combinados com os altos custos de energia, aumentaram os preços dos alimentos e causaram escassez no mundo em desenvolvimento.

"A situação mudou. Temos que ser capazes de produzir um suprimento suficiente de alimentos. Precisamos aproveitar a tecnologia para nos adaptar às mudanças climáticas e manter a biodiversidade", diz Pekka Pesonen, secretário-geral da Copa-Cogeca, o sindicato dos agricultores da UE.

Mas o medo das "frankenfoods" é profundo. Ambientalistas e ativistas dizem que as empresas agrícolas aproveitaram as mudanças climáticas para impor tecnologia não testada ao público. Resolver a fome é um argumento sedutor para conquistar políticos e populações céticas sem evidências que o apoiem, dizem eles.

"Não há razão para desregulamentar a edição genética", diz Mute Schimpf, ativista de alimentos da ONG Amigos da Terra Europa. "É uma nova tecnologia desenvolvida nos últimos dez anos. Não sabemos como pode impactar a natureza e a agricultura, e como o interesse do consumidor será afetado."

No entanto, a Europa é agora uma exceção entre as grandes economias em tratar as culturas geneticamente editadas da mesma maneira que os OGMs, e alguns legisladores estão começando a acreditar que os riscos são superados pelos benefícios potenciais para os agricultores, para a economia e para o meio ambiente.

"As plantas obtidas com novas técnicas genômicas podem ajudar a construir um sistema agroalimentar mais resiliente e sustentável", disse Stella Kyriakides, comissária europeia de saúde e segurança alimentar, ao lançar uma consulta sobre sua proposta este ano. "Esse foi o princípio orientador da política alimentar da UE no passado e sempre continuará sendo."

Prós e contras

Os cientistas vêm cruzando espécies para criar culturas mais resistentes há décadas.

Por exemplo, pesquisadores produziram uma variedade de trigo que combina o alto rendimento de um tipo com o caule sólido de outro, o que o ajuda a resistir ao vento e à chuva.

Os defensores dizem que a edição de genes faz o mesmo, de forma mais eficaz. Poderia, por exemplo, ajudar a desenvolver trigo que fornece nutrientes para o solo, reduzindo a necessidade de fertilizantes, diz Pesonen.

"Eles são fundamentalmente diferentes dos OGMs", diz Pesonen. "Imagine a melhoria que poderíamos obter no cenário ideal, tanto em termos de nutrientes ou teor de proteína quanto em competitividade."

As esperanças também são grandes para a criação de culturas capazes de suportar os efeitos das mudanças climáticas.

"Se pudéssemos criar culturas com base no que sabemos sobre genética para serem mais tolerantes à seca, mais tolerantes à salinidade, mais tolerantes ao calor e produzir mais sob certas condições, isso definitivamente poderia nos ajudar em termos de segurança alimentar e adaptação às mudanças climáticas", disse Ismahane Elouafi, cientista-chefe da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

Os críticos da tecnologia veem esse argumento como uma farsa. Eles dizem que o movimento da Comissão Europeia não é impulsionado pela ciência, mas pelo lobby do agronegócio, e que o atual regime regulatório deve ser mantido. Eles também estão preocupados com a potencial falta de transparência para os consumidores.

Christoph Then, da ONG alemã Testbiotech, que alerta sobre os riscos da engenharia genética, diz que as mudanças intencionais e não intencionais causadas pela edição genética podem ir muito além do que se pode esperar da reprodução convencional. "Achamos que é preciso haver uma avaliação de risco adequada. Achamos que o atual quadro [regulatório] é apropriado", disse ele.

O geneticista molecular Michael Antoniou, do King's College London, alerta que a tecnologia de edição de genes não é tão precisa quanto se alega, não é equivalente ao melhoramento e não é diferente da modificação genética.

Ele teme mudanças não intencionais na bioquímica do gene e sua composição. "Você corre o risco de criar novas toxinas e novos alérgenos, ou adicionar toxinas e alérgenos conhecidos", diz ele.

Martin Häusling, um eurodeputado alemão que é porta-voz do Partido Verde para a agricultura, diz que existem outras maneiras de os agricultores enfrentarem as alterações climáticas, como rotação de culturas, técnicas de melhoramento do solo e sementes naturalmente adaptadas, em vez de recorrer à engenharia genética.

Ele e outros opositores também alegam que os produtos geneticamente editados fortalecerão ainda mais o controle das "Big Ag", as grandes empresas de insumos agrícolas, especialmente fornecedores de sementes como Bayer, Corteva e BASF.

Os pequenos agricultores ficarão mais dependentes de insumos externos, como sementes, fertilizantes e pesticidas, diz ele. "Portanto, também são mais vulneráveis em termos de anos ruins e desafios climáticos."

No entanto, os defensores da tecnologia afirmam que a pesquisa e o desenvolvimento de edição genética são mais acessíveis para atores de pequeno e médio porte e laboratórios de pesquisa universitários do que para o desenvolvimento de OGMs.

Os avanços tecnológicos tornaram a edição de genes relativamente mais barata do que os OGMs, enquanto algumas tecnologias de edição genética são fornecidas em plataformas abertas para fins de pesquisa.

Empresas e laboratórios de pesquisa sediados em países que tratam produtos editados geneticamente da mesma forma que produtos produzidos convencionalmente não precisam gastar tempo e dinheiro lidando com o processo regulatório.

Custos menores e prazos de entrega reduzidos atraíram cientistas e empreendedores a lançar start-ups, que levantaram centenas de milhões de dólares de investidores de capital de risco. A Euroseeds diz que 90% dos seus membros são PME.

Não é a solução definitiva

Apesar das expectativas de que culturas com edição genética possam ajudar a mitigar os efeitos das mudanças climáticas, a realidade é que elas ainda estão distantes.

Apenas um punhado de produtos geneticamente editados foi aprovado para venda, incluindo uma soja que produz óleo com menos gordura saturada nos EUA e um tomate com um aminoácido que diminui a pressão arterial no Japão.

Mesmo com a edição genética, criar uma cultura que, por exemplo, seja resistente à seca levará pelo menos cinco anos, segundo cientistas da Universidade de Calgary.

Isso ocorre porque existem vários genes e várias estruturas genéticas que afetam a tolerância de uma planta à seca, e estes precisam ser analisados, alterados e testados de forma incremental.

Muitos defensores da tecnologia reconhecem que, embora a engenharia genética acelere a pesquisa e ofereça maior precisão nas mudanças, não é uma solução definitiva.

A resistência a doenças é "bastante fácil de atingir em resposta à edição", diz Sarah Raffan, pesquisadora focada na edição genética do trigo na instituição de pesquisa Rothamsted do Reino Unido, mas a resistência à seca é uma "característica mais complexa". "Um gene pode adicionar um pouco de resistência à seca sob certas condições, mas aí você precisa de outro gene para coisas diferentes."

Houve um maior progresso na edição de genes para melhorar os rendimentos. A Inari, empresa de agrotecnologia dos EUA criada em 2016, vem trabalhando na edição genética para aumentar os rendimentos de trigo, milho e soja, além de reduzir o fertilizante de nitrogênio e a água necessários. Sua executiva-chefe, Ponsi Trivisvavet, que supervisionou uma recente rodada de investimentos de US$ 124 milhões em estágio final, descreve a edição genética como uma "tecnologia superpoderosa".

A Inari visa aumentos de rendimento de até 20% em milho, trigo e soja, com metas de redução de insumos de 40% em água e fertilizantes nitrogenados para o milho. Trivisvavet diz que a start-up está quase chegando às metas de rendimento de soja, e observa: "Tudo isso não pode ser feito com a tecnologia [convencional]".

A Inari tem laboratórios de pesquisa nos Estados Unidos e na Bélgica, e Trivisvavet quer que a UE avance mais rápido para permitir a edição genética. "Se [a UE não] adotar essa tecnologia, será muito complicado lidar com [os efeitos das] mudanças climáticas. Esperamos que a UE realmente some forças com o resto do mundo", diz ela.

Tolerância à seca, aumento da produtividade e melhoria da produtividade com menores quantidades de insumos são problemas complexos de resolver, observa ela. "É preciso começar agora para realmente resolver os problemas que estão aumentando. Se começarmos daqui a cinco anos, será tarde demais."

Panorama mundial

Os formuladores de políticas da UE que apoiam a bioengenharia também temem ficar para trás do resto do mundo na corrida tecnológica.

Mais de 15 países estabeleceram regras abertas à edição genética em cultivos, incluindo China, Índia, Argentina e Austrália, de acordo com Thorben Sprink e colegas do Instituto Julius Kühn da Alemanha, um centro federal de pesquisa para plantas cultivadas. Muitos países, incluindo EUA, Canadá, Brasil e Japão, não diferenciam a edição genética da reprodução convencional.

Mais governos têm esclarecido seus regimes regulatórios em torno da edição de genes nos últimos anos. O Reino Unido está procurando flexibilizar seus regulamentos desde a saída da UE: uma nova legislação que permitiria o desenvolvimento e a venda de culturas e animais editados geneticamente na Inglaterra será debatida na Câmara dos Lordes, a segunda câmara do Parlamento.

A Índia anunciou no início deste ano que certas culturas com edição genética seriam isentas das regras dos OGMs. A China, líder global em pesquisas de edição genética de cultivos, com cerca de 75% das patentes mundiais, adotou diretrizes sobre a comercialização de produtos que, segundo analistas, reduzem o tempo de aprovação de cerca de seis anos para um ou dois.

Sendo a UE um dos principais importadores de produtos agrícolas, incluindo milho e soja para alimentação animal, suas políticas de engenharia genética têm um grande impacto nas dos seus parceiros comerciais.

Esse é especialmente o caso dos países em desenvolvimento que dependem da renda da UE, diz Elouafi, da FAO. "[Com] países do sul global, se há um debate sobre edição de genes [e se é] um OGM ou não, eles tendem a não usá-lo nem mesmo para seus programas de pesquisa. Eles têm tanto medo de perder o mercado europeu que simplesmente param de usá-lo."

Isso também retém a P&D, alertam os cientistas. "Os criadores de plantas hesitam em adicionar variedades criadas usando a edição do genoma se não forem conseguir vendê-las", diz Raffan.

Blues genético

A campanha para trazer a edição genética para a Europa enfrenta um grande obstáculo: para a UE decidir que a tecnologia está no mesmo nível da reprodução convencional, seria necessária uma maioria qualificada de países membros favoráveis.

No entanto, a Alemanha, o maior membro, já disse que permanecerá neutra, o que conta como um voto "não". O governo de coalizão da Alemanha inclui o Partido Verde, e eles controlam o Ministério da Agricultura. "Acho que atualmente não temos a maioria dos estados membros", diz Jorasch, da Euroseeds.

Os legisladores podem ser influenciados por uma crescente reação popular contra a tecnologia. Uma consulta pública recente da Comissão Europeia recebeu 70 mil respostas, com 98% de oposição a uma mudança de política, já que as ONGs pediram ao público que escrevesse, muitas vezes fornecendo respostas prontas para eles usarem.

Outras pesquisas descobriram que os consumidores tendem a ter pouca consciência e conhecimento sobre alimentos editados geneticamente. Uma pesquisa com mais de 2.000 pessoas feita em julho de 2021 pela Agência de Padrões Alimentares do governo do Reino Unido descobriu que apenas 20% dos entrevistados diziam estar razoavelmente ou muito bem informados sobre o assunto.

Depois de receber informações sobre edição genética e tecnologias de OGM, 39% dos entrevistados disseram que achavam que os alimentos editados geneticamente eram bastante ou muito seguros para o consumo, enquanto 30% achavam que eram bastante ou muito inseguros, enquanto 31% responderam que não sabiam.

A Agência Europeia de Segurança Alimentar, responsável pelas avaliações de risco, publicou em outubro a conclusão de um relatório de que as técnicas de edição genética eram de menor risco do que os OGMs, menos propensas a causar mutações não intencionais ou interferir nas plantas tradicionais.

Os defensores esperam que informações como essa façam legisladores céticos pensarem melhor sobre o que a confirmação da proibição da edição genética pode significar para os agricultores. Bruxelas ainda está avançando nos planos de cortar o uso de pesticidas pela metade até 2030, reduzir a poluição por nitrogênio das fazendas –o que significa menos fertilizantes– e as emissões de metano dos animais, medidas que provavelmente diminuirão o rebanho da UE.

Os agricultores dizem que estão ficando sem ferramentas para manter a produtividade. Em seu pôlder seco no sul da Holanda, Ten Cate, 45, pergunta-se por quanto tempo poderá continuar cultivando suas batatas, cebolas, cenouras e beterrabas.

"Temos que inovar se quisermos produzir alimentos na Europa", diz. "Talvez nos tornemos dependentes de outros países se não adotarmos essas novas tecnologias."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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