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Um ano após tremor, haitianos ainda vivem em acampamentos; leia relato de repórter
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FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A
PORTO PRÍNCIPE (HAITI)
À noite, o campo de desabrigados de Caradeux, no oeste de Porto Príncipe, tem poucos focos de luz. São 20h e, à exceção dos cânticos da igreja evangélica instalada em uma tenda ao longe, não há grande movimento ou ruído.
Sherlyne Louis, 33, já está deitada em sua barraca. Fazendo, segundo diz, o de sempre numa hora como aquela: nada. Três crianças cochilam emboladas num assento duplo de madeira, sem estofo.
Sem luz elétrica, com a mini TV à pilha quebrada, Sherlyne reclama de uma dor de estômago.
Hector Retamal-9.jan.2011/AFP | ||
Criança haitiana leva baldes para coletar água no acampamento de Acra, em Porto Príncipe |
A Folha pernoitou nesta terça-feira no barraco de Sherlyne e teve experiência semelhante à vivida diariamente por milhares de vítimas do terremoto que hoje completa um ano.
O tremor matou seu marido e acabou com a vida do casal de classe média modesta.
Ela toma o álbum de fotografias. Mostra seu marido, Jean Lauyaud Hypollite. "Começamos a namorar com 13 anos. O primeiro beijo foi na minha casa."
Quando o país tremeu às 16h53 há um ano, causando mais de 200 mil mortes, a vendedora de sapatos estava no centro da cidade. Mesmo em uma das áreas mais destruídas, saiu ilesa.
Caminhou cinco ou mais horas, ela calcula, até chegar em casa e encontrar os três filhos na rua, salvos. Só teria a confirmação da morte do marido, que trabalhava numa firma de entregas de encomenda, um mês depois.
"Muitas vezes penso no dia do terremoto", diz.
Ela pretende rezar das 6h às 6h hoje, em sua igreja evangélica. Por estar viva e para que os filhos deixem o Haiti.
INFLAÇÃO IMOBILIÁRIA
Em um ano, Sherlyne mudou de zona da cidade, viu crescer uma dívida no banco e leva duas horas para chegar ao centro e seguir vendendo sapatos.
Como 810 mil haitianos, vive numa barraca em um dos 1.150 campos para desabrigados --espontâneos, em espaços vazios e praças, ou organizados por ONGs.
Como a sogra também perdera o marido, as duas resolveram tentar a sorte juntas. O grupo agregou Jerry Charlotino, 10, que o tremor deixou órfão. Era um dos que cochilava no sofá. Todos dividem duas barracas.
Eles vivem na versão mais ampla das tendas doadas pela ONU ou por países: 3 x 4 metros. Mas há quem more há um ano em barracas em áreas muito mais densas que Caradeux, que ainda tem a vantagem de ser um dos poucos campos que têm vigilância fixa dos capacetes azuis da ONU.
Enquanto a vendedora se lamenta e tenta dar um ar de casa à barraca --quadro, relógio de parede--, num outro acampamento da mesma zona da cidade, o Canaã, mora Michèle Joseph, 34.
Ela é um dos termômetros do paradoxo da tragédia: com a lentíssima reconstrução, o mercado imobiliário segue quente e inflacionado.
Desde os bairros pobres, até as zonas ricas da cidade, há ONGs pagando o dobro do que costumavam antes do tremor.
É por isso que Michèle decidiu deixar sua casa --avariada pelo terremoto, mas não condenada-- para ir morar em Canaã, onde também pagou para conseguir um lugar. "Não tinha escolha. Como ia pagar a escola dos filhos?", diz.
Pela casa que aluga ela recebe cerca de US$ 800 por ano.
PARA FERVER
Sherlyne vivia de aluguel, mas não sabe quando voltará a fazê-lo. Não se arrisca a dizer nem mesmo quando terá luz elétrica. "Eles dizem que não podemos ter eletricidade, pelo risco de incêndio." E completa, com ironia: "Temos energia solar".
"Se a barraca está fresca agora, espera até chegar de manhã", ela avisa. Numa cidade com temperatura média de 30ºC, é uma queixa comum dos desabrigados.
Por causa do calor, às 5h, e ainda às escuras, o acampamento de Caradeux já acordou. Mulheres e crianças com frutas, lata d'água e cestas de biscoito na cabeça circulam. Um grupo de homens discute alto.
A vendedora salta da cama para a cadeira e de lá para outro móvel. Alcança um balde para água. As crianças também acordaram. Não há nenhum gesto que indique que haverá café da manhã.
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