Descrição de chapéu
funk estupro

Cruzada musical

Há considerável diferença entre a retirada da música "Só Surubinha de Leve" de plataformas digitais e um ato de censura.

A precisão jurídica recomenda que o uso desse termo se restrinja a casos em que autoridade pública utiliza seus poderes para cercear a circulação de ideias, especialmente aquelas com conteúdo político, religioso ou artístico.

Já o veto ao funk de MC Diguinho, por alegada alusão a estupro, partiu de agentes privados, que podem fazer tudo o que não é proibido por lei. Os efeitos práticos até parecem semelhantes —e, do ponto de vista dos atingidos, as decisões tomadas por empresas são mais difíceis de questionar.

Contra a censura podem-se tomar providências judiciais, uma vez que a Constituição é clara ao bani-la da paisagem institucional do país. As cortes superiores têm sabido, de forma consistente, coibir atos de cerceamento da liberdade de expressão.

Nem sempre se pode dizer o mesmo de outros atores, entre eles religiosos, delegados, políticos e juízes de primeira instância, dispostos a investidas contra variadas manifestações artísticas.

No caso do funk, chegou-se a propor uma lei para criminalizá-lo —iniciativa que, felizmente, foi bloqueada no Senado devido à flagrante inconstitucionalidade.

Obviamente, ninguém está obrigado a consumir ou mesmo gostar desse gênero musical. É possível, sem dúvida, produzir um bom argumento estético contra as obras.

Não se pode negar, ainda, o elo entre a realização dos bailes funk e a ocorrência de crimes graves, como tráfico de drogas a estupros. Isso é motivo para que as autoridades redobrem seus esforços no combate aos delitos, mas jamais para proibir os eventos em torno dos quais eles ocorrem.

Contra cruzadas do tipo, só cabe promover o cultivo da tolerância. Ou, dito de outro modo, do princípio de que indivíduos devem abdicar da tentativa de impor suas crenças e gostos a quem não deseja compartilhá-los.

Se isso já se mostra complicado em condições normais, fica-o muito mais nos momentos de polarização social aguda, em que grupos deixam de se ver como meros portadores de uma opinião para assumirem o pretenso papel de paladinos de uma moral absoluta que não comporta negociações.

Trata-se, porém, de tarefa essencial para a preservação de uma sociedade aberta e plural.

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