Leitora descreve seu "caso de amor" com São Paulo
E foi desse jeitinho que São Paulo começou a fazer parte de minha vida. Havendo terminado o colegial, era mister escolher uma faculdade para cursar. Confesso que fiz uso de uma artimanha, descartando o magistério. Contrariei, assim, o desejo sólido de meu pai, para cuja tranquilidade as filhas não deveriam sair de junto de si jamais.
Enfim, lá fomos nós dois, em meados da década de 1960, numa solene viagem de trem, de Brotas à capital. Durante todo o trajeto, fui doutrinada a não "puxar prosa" com desconhecidos, escolher criteriosamente as amizades, olhar bem para os dois lados para atravessar a rua. Nossa! Que complicado devia ser isso de viver em cidade grande, para minha simplicidade brotense e caseira.
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Minha vontade era a de me tornar agrônoma, mas como isso "não era coisa para mulher", obedeci dessa feita e, atirando longe minhas apostilas de física, química e biologia, ingressei num curso de letras, bem feminino.
A escola se chamava Sedes Sapientiae e era verdadeiramente linda. Eu entrava pela rua Caio Prado e, bem em frente ao colégio Des Oiseaux, protegido pelo mesmo muro alto, conquistei minhas primeiras amigas --duas árvores anônimas, que de tão deslumbrantes dispensavam detalhes. Toda as manhã elas me saudavam, às vezes chorando chuva, outras a sorrir ensolaradas. De coração aberto, trocávamos confidências. Que falta eu sentia da família e dos amigos e de minha cidadezinha e de andar descalça e de falar com todo mundo que encontrasse pela frente!
A faculdade era rodeada por um belo bosque, com mesas e bancos de concreto para estudos de grupo, caramanchões propícios a segredinhos de amor, o ar brindado pelo perfume adocicado das flores mais simples.
Observava minhas colegas, elegantes no trajar e no andar, seguras em seus gestos comedidos, uma inveja para minha excessiva espontaneidade.
Sempre sozinha naquela estreia de vida nova, após as aulas me enfurnava no Cine Bijou na praça Roosevelt, me deleitando com filmes selecionados que me distraíam daquela realidade um tanto inóspita. Depois de uma prece na igreja da Consolação, confesso que parava no barzinho do Eduardo para tomar uma batidinha, que ninguém é de ferro.
Bem perto passei a conhecer outros povos, pela gastronomia. Maison Suisse --uma vez por mês e olhe lá-- cheiinho de pessoas discretas e contidas, que de aperitivo saboreavam notícias de sua terra longínqua em jornais grampeados, a falar baixinho --como seriam capazes?
São Paulo saciava minha ânsia ardente de conhecer, de saber, realidade mesclada a sonhos. Enriquecia-me com sua profusão de culturas diferentes. Tão múltipla era essa metrópole, que me permitia atravessar o Japão agora, pouco mais tarde estar em Israel, no dia seguinte viajar pelo Líbano, através de seus bairros ou de minhas próprias colegas, já convertidas em grandes amigas, de origens diversas, variadas.
Quando uma chuvinha fina se fazia presente, me agasalhava numa gabardine branca e desembarcava no centro, coração imenso que abrigava gente de toda parte do país, multidão pulsante que me atontava com seu vaivém colorido.
Gastava horas infiltrando-me pelas galerias, garimpando curiosidades, até que, exausta das andanças, fazia uma pausa no deslumbrante cenário da biblioteca para um tranquilo mergulho na leitura.
Nessa época, me maravilhei com a descoberta das leiterias que proliferavam charmosas, sugerindo saúde. Que pecado grave teremos cometido para nos privarem delas, dos trens, dos bondes, dos cinemas suntuosos?
Felizmente, firme, lá está, magnificente e altiva, a Estação da Luz, tão inglesa, descaradamente de olho no belo parque, seu fiel companheiro.
Passando pela Sete de Abril, o perfume italiano dos pratos do Massadoro, recém-saídos do forno, me atraía como um ímã. Esgueirava-me pela multidão que se acotovelava, para uma rápida degustação nos balcões do térreo ou, se havia algum tempo de sobra, dava-me o luxo de subir ao restaurante, onde não raro encontrava algum dos meus irmãos, para minha felicidade.
Mas a emoção máxima residia na Barão de Itapetininga. Meu coração batia descompassado ao subir uns poucos degraus e me deparar com aquele local amplo, aristocrático, janelões de corpo inteiro --a Confeitaria Vienense. Móveis sóbrios, antigos, cadeiras de palhinha, lustres de cristal, minha eterna mania de imaginar uma historinha para cada pessoa e aquela garoa lá fora, a contrastar com o calor da música de violinos, lindamente interpretada por um quinteto, também bastante antigo.
A cidade grande me adotava. E foi gradativamente me cativando. Sem saber precisar o momento exato, quando dei por mim já havia sucumbido aos seus encantos.
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