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11/03/2011 - 16h01

Serafina vai a culto na igreja criada por Glauco Villas Boas

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
DE SÃO PAULO

"A vida começou a voltar no segundo semestre", diz Beatriz Guimarães, na sala da casa que construiu com Glauco Villas Boas, no pico do Jaraguá, a 20 km do centro de São Paulo.

Egberto Nogueira
Igreja Céu de Maria, fundada por Glauco e sua mulher na cidade de São Paulo, recebe cerca de 10 mil visitas por ano
Igreja Céu de Maria, fundada por Glauco e sua mulher na cidade de São Paulo, recebe cerca de 10 mil visitas por ano

No fim da década de 1990, quando os dois começaram a procurar um pedaço de terra para morar e erguer o templo da Céu de Maria, Glauco sonhava com um lugar alto. Até então, a igreja do Santo Daime mantida pelo casal fazia seus cultos num quintal no bairro do Butantã. Mas ficou pequeno --e tinha o problema da cantoria. Entoam-se hinos em série que avançam a madrugada.

Quando a vida começou a voltar para Bia, já tinham se passado cinco ou seis meses da morte de Glauco. Ele e o filho Raoni foram mortos a tiros de pistola em 12 de março de 2010. Dois dias antes, o inesquecível criador do Geraldão completara 53 anos. Raoni tinha 25. O assassino confesso, Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, 24, que está preso, era um ex-frequentador da igreja.

"O pai dele e o irmão também morreram aos 53", lembra Bia, evocando um sinal.

Sentado à minha frente, Ipojucan, o outro filho de Glauco, parece impaciente. A presença da imprensa o incomoda. Questiona o fato de a Folha, na época do crime, ter vendido uma fotografia dele e de Bia à "Veja". Não gostou da reportagem da revista.

Explico que a venda de imagens é rotina na imprensa. Ok. Mas Ipojucan não quer fotos dessa vez. Para quebrar o gelo, lembro histórias de farras e trabalho que compartilhei com o pai dele. Rimos.

Pergunta se vou ficar para os trabalhos. Acho que sim, mas não pretendo tomar o chá. Um conhecedor do assunto confirmou-me que, além do efeito alucinógeno, a bebida pode provocar enjoo e dor de barriga. Detesto enjoo e dor de barriga.

"Glauco existe no plano espiritual. Está superpresente na minha vida. Ele aparece em sonhos", relata Bia. Ipojucan experimenta a mesma coisa. Para os dois, o Daime foi um bálsamo a aplacar maus sentimentos contra o autor do crime.

"É o que nos ajuda a atravessar isso sem ódio", afirma ela. "Se fosse para trazer o Glauco e o Raoni de volta, iria até o fim do mundo, mas ficar preocupada com esse cara não é o caminho." Ipojucan concorda --"não quero pensar nisso", diz.

Não são só os fãs do cartunista e de seu senso de humor que sentem a ausência. O líder espiritual faz falta. "Glauco deixou muitos órfãos, diz Bia. "Ele salvou muita gente."

Conhecido como "irmão alegria", dizia que uma boa risada cura mais que terapia.

Depois de enfrentar suas próprias dificuldades com o consumo de drogas, Glauco passou a ajudar as pessoas que procuravam a igreja, algumas delas dependentes de álcool ou de cocaína. Ele conversava, orientava, escrevia hinos e conduzia os trabalhos tocando acordeão. "Dá muito Doy George por aqui", brinca Bia, referindo-se ao personagem "over" que se tornaria célebre entre os fãs de Glauco.

A Céu de Maria ocupa um pedaço de terra cercado de mata, no alto de um monte, de onde se vislumbra a rumorosa mancha urbana de São Paulo e um trecho da via Anhanguera. Próximo à igreja fica a casa da família, onde viviam Glauco, Bia, os dois filhos (de relações anteriores e nascidos no mesmo ano) e Gersila, filha adotiva e namorada de Raoni.

Amor que fica

O encontro entre Glauco e Bia, há 17 anos, foi um capítulo singular. Conheceram-se durante um culto e, sem trocar sequer um beijo, se casaram quatro meses depois.

Em torno da casa que ergueram, entre as árvores, podem-se ver outras três residências, de amigos e familiares. Há também um quiosque e o antigo estúdio do cartunista, que Ipojucan passou a utilizar. Ele toca bateria na banda Paris Le Rock e desenvolve para empresas trabalhos terapêuticos e interativos em parceria com uma dançarina.

O templo pode abrigar até 300 pessoas e, como era Glauco, é leve e encantador.

Bandeirinhas coloridas, cortadas à moda de festas de São João, balançam no teto tendo como eixo a estrela de seis pontas no centro do círculo.

Entre as imagens, uma Nossa Senhora Aparecida tem a seus pés o desenho da raiz de jagube, uma das matérias-primas para a feitura do chá.

A igreja tornou-se mais famosa e mais visada depois dos acontecimentos de um ano atrás. Foi alvo de desconfianças, mas também atraiu novos fiéis. Ali, o legado espiritual de Glauco sobrevive. A Céu de Maria já tem 18 anos de vida e recebe 10 mil visitas por ano.

Sua memória como desenhista também será avivada neste ano: a família prepara uma série de lançamentos, de publicações a uma exposição.

A editora Seco reedita em breve, em formato de livro capa dura, 11 revistas lançadas nos anos 1980, com tiras dos personagens do cartunista.

A Companhia das Letras deve lançar os intrépidos "Los 3 Amigos", a parceria com os colegas Angeli, Laerte e Adão.

Uma série de camisetas e bonecos será vendida em lojas físicas e virtuais. Há chance de que uma produção audiovisual aconteça e está em fase de captação de patrocínio uma grande mostra retrospectiva.

A exposição será intitulada "Espoucando a Silibina". Entre suas atrações, haverá uma sala dedicada ao Geraldão, com direito a um buraco de fechadura para o visitante bisbilhotar.

Bia convida para um café e um sanduíche. Vamos à cozinha. "Dava pra viver mais 30 anos com ele. A gente estava maduro, entrando em velocidade de cruzeiro; era a hora da maré mansa", lamenta.

Resiste a princípio, mas posa para fotografias. Está com pressa. As pessoas chegam para o culto.

Homens engravatados, com a "farda" do Santo Daime, ficam à direita da entrada. As mulheres, à esquerda.

Bia vai se vestir para o culto. Volta altiva. Começam as orações. A seguir os cantos. Soam o acordeão e o violão. As vozes em uníssono.

Todos em fila para receber o chá. Já são mais de 21h. Os trabalhos prometem ir até depois da meia-noite.

Não vou ficar.

 

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