Repórteres narram destruição em diário de viagem pelo Pantanal em chamas

Em uma das áreas mais preservadas do bioma, repórteres veem animais incinerados e brigadistas aguerridos

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Corpo de um macaco carbonizado por incêndio florestal no Pantanal Lalo de Almeida/Folhapress

Corumbá (MS)

Desde agosto, registramos o rastro de destruição do maior incêndio da história do Pantanal. Recentemente, viajamos à região da Serra do Amolar, uma das áreas mais preservadas do bioma.

No caminho, encontramos calor extremo, pássaros incinerados em pleno voo, cervos-do-Pantanal ilhados pelo fogo, uma onça-pintada e a aguerrida Brigada Piauí, que viajou cerca de 4.000 km de carro para se unir aos esforços contra as queimadas.

30.set

De cima, Campo Grande (MS) aparece imersa em uma nuvem de fumaça que ocupa toda a troposfera, a camada atmosférica mais próxima da superfície da Terra. É como um dia de inversão térmica em São Paulo em escala muitas vezes maior. A linha que separa o céu azul da estratosfera e o ar bege são como o experimento de água e óleo. O avião começa a descer e mergulha no óleo.

Do aeroporto, seguimos de carro até Corumbá, uma viagem de 428 km. As notícias da BR-262 não eram boas. No domingo (27 de setembro), a visibilidade ruim havia provocado um acidente entre dois caminhões, com um morto. O trânsito foi interrompido por algumas horas devido ao fogo em suas margens.

Três dias depois, o trecho final, entre Miranda e Corumbá, continua queimando. O vento, um dos principais aliados do fogo, sopra tão forte que a fumaça das dezenas de focos de incêndio não sobe. Corre na vertical.

Nas pequenas lagoas à beira da estrada, dezenas de cervos-do-Pantanal se refugiam dentro da água, cercados de vegetação queimada e de fogo.

Em Corumbá, trocamos o carro pela lancha Tubarão Africano 2. No termômetro, 42ºC, às 15h17. No rio Paraguai com o menor nível de sua história, dezenas de banhistas se refrescavam.

Normalmente, quando o barco se movimenta, a brisa alivia o calor. No inferno que se transformou o Pantanal, é o contrário: bate no rosto o bafo quente de um forno com a porta aberta. Para piorar, a fumaça provoca ardência e lágrimas nos olhos.

Uma hora depois, em meio a uma paisagem que alternava vegetação queimada com a mata seca, uma linda surpresa. Na margem direita, uma onça-pintada espreita duas ariranhas na água. Paramos o barco para observar. As ariranhas somem, e a onça senta na ribanceira. Indiferente, solta dois bocejos.

À noite, dormimos na casa de um dos funcionários da fazenda Santa Tereza.

1º.out.

Depois de um sono dificultado pelo calor inclemente, retomamos a viagem às 5h. Ao longo do rio, diversos focos de incêndio, alguns com chamas altas. É uma imagem que não tínhamos visto no Pantanal de Mato Grosso, onde o fogo só aparecia a partir do final da manhã, com a elevação da temperatura.

Chegamos ao Porto Mangueira, penúltima parada. Ali, uma equipe de cinco brigadistas do Prevfogo (Ibama) de Corumbá combate o fogo que consome uma área de mata. Um deles mostra a foto de um macaco-prego fêmea morta com um filhote. Ele ainda tentou salvá-los, mas as chamas impediram.

“Aqui tem um fogo para cada homem”, diz o brigadista Leonir. O tom é de exagero, mas a realidade, descobrimos mais tarde, era muito, muito pior. A fazenda Santa Tereza somava naquele dia 1.589 focos de calor, segundo monitoramento do Instituto do Homem Pantaneiro (IHP).

Ou seja, 318 focos para cada brigadista.

Do porto, vamos de camionete até a sede da fazenda, uma distância de 18 km, percorrida em 40 minutos. Só o início, onde os brigadistas tentam conter o avanço do fogo, está queimado.

Apesar da vegetação seca, o trajeto é bonito: sinuosa, a estrada está espremida entre morros e uma imensa baía com jacarés e avifauna. A fazenda tem 63 mil hectares, dos quais 83% são de mata nativa. O restante é usado para a pecuária.

De novo, a noite estava quente, seca e enfumaçada. A sede da fazenda parecia sitiada pelo fogo. No horizonte, três incêndios pareciam fogueiras gigantes. Um deles estava no rumo do porto.

2.out.

Alimentado pelos fortes ventos, o fogo avançou durante a noite e se aproximou da sede. De manhã, partimos de camionete de volta ao porto. É inacreditável, mas toda a vegetação foi queimada até o limite da baía. No chão escuro, as cinzas brancas chegam a lembrar neve. Dezenas de árvores caídas, algumas em chamas, atravessam a estrada.

O administrador da fazenda, Rafael Galvão, abre caminho com uma motosserra e a ajuda dos quatro passageiros da camionete. Com as mãos, jogamos troncos e galhos serrados para longe da via.

A gasolina da motosserra acaba rápido. O jeito é amarrar as árvores à camionete e arrastá-las, usar facões e procurar desvios na mata queimada.

Vários animais não conseguiram escapar do fogo: um grupo de bugios, duas cutias, uma anta e uma sucuri. É assustador imaginar quantos animais morreram nos cerca de 4 milhões de hectares de Pantanal queimados a partir dessa pequena amostra.

De mais impressionante, pássaros mortos pelo fogo, algo que nem os brigadistas mais experientes tinham presenciado. Um pica-pau, um japu e dois pássaros irreconhecíveis. Pendurado em um galho, um pássaro calcinado em posição de voo, as pernas em ângulo reto com o corpo.

Encontramos sobreviventes. Na beira da baía, um bando de queixadas se refresca, alguns com o pelo chamuscado, outros com dificuldades para caminhar. No alto de árvores já sem copa, duas famílias de macaco zogue-zogue. O que vão comer?

Em vez dos 40 minutos da véspera, os 18 km foram percorridos em 4 horas. No porto, um grupo recém-chegado de brigadistas do Prevfogo do Piauí. Até o Pantanal, foram 4.000 km e três dias viajando em camionete. Dormiram em Brasília e Rondonópolis (MT). De Corumbá, encararam mais 4h de barco.

No fim da tarde, voltamos na boleia da camionete com os brigadistas de Corumbá. Perto da sede, boa parte do pasto que estava intacto horas antes havia se transformado em um grande tapete escuro.

3.out.

Enquanto os brigadistas de Corumbá esperam o transporte aéreo para levá-los para casa, os colegas do Piauí começam a trabalhar às 7h.

São 12 homens, quase todos agricultores assentados, vindos de três municípios do interior: Alvorada do Gurgueia, Uruçuí e Floriano. Com contratos temporários, ganham cerca de R$ 1.400 por mês. Por estarem fora do Piauí, recebem uma diária extra de R$ 140.

O objetivo do dia é controlar o fogo em uma área de mata vizinha a um pasto. O trabalho perto das chamas é muitas vezes manual, usando ferramentas como enxadas e facões. Eles também dispõem de assopradores e motosserras.

Incansáveis, os brigadistas lutam contra o fogo no local até as 19h, com um pequeno intervalo para o almoço. A água disponível está salobra e quente, mas é consumida em grandes goles. Por sorte, o vento está fraco, e os brigadistas conseguem controlar o foco.

O chefe da Brigada Piauí é Francisco Valeriano, 53. Ele diz que, no Pantanal, as árvores são altas, e o fogo na copa torna trabalho mais difícil. Por outro lado, a vegetação da caatinga é quase impenetrável por causa de plantas espinhosas, que podem destroçar um uniforme em apenas um dia.

Já é escuro quando os brigadistas chegam de volta à sede, amontoados sobre a carroceria da camionete. Mas eles nem descem: um novo foco de incêndio ali perto exige atenção. Mesmo exaustos, trabalham por mais 2h antes de finalmente descansar.

4.out.

Um helicóptero do Ibama desce para pegar cinco brigadistas do Piauí, para trabalhar em uma região próxima onde o fogo está incontrolável.

Os demais continuam lutando para evitar que o fogo se espalhe. Um tronco que na véspera havia sido resfriado com 3.000 litros de água volta a queimar. Para apagar de vez, eles decidem enterrá-lo.

5.out.

De manhã, Rafael nos leva para o porto, de onde partimos de volta para Corumbá pelo rio Paraguai. Nenhum sinal de chuva no céu, mas o calor deu uma arrefecida, e os ventos diminuíram. Ao menos 60% da fazenda Santa Tereza já foi queimada.

Os jornalistas viajaram ao Pantanal a convite do Instituto Acaia

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