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Negociadores acusam presidência da COP26 de tentar reescrever Acordo de Paris

Fantasma do brexit cria disputa entre britânicos e europeus por protagonismo climático

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Glasgow (Escócia)

Nos corredores da COP26, diplomatas têm criticado a condução do Reino Unido na presidência da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, por privilegiar a negociação de questões que não estão na regulamentação do Acordo de Paris. Essa atitude, avaliam, prioriza a busca de um resultado político que marque o evento.

O objetivo da presidência britânica, segundo os críticos, seria criar manchetes positivas para a COP26 na mídia global, dando uma sinalização de sucesso e cavando protagonismo britânico para a pauta climática –que tem no Acordo de Paris a sua maior conquista internacional.

Alok Sharma, presidente britânico da COP26, fala em cerimônia do evento, em Glasgow - Andy Buchanan - 11.nov.2021/AFP

A urgência climática tem pautado o tom de discursos políticos que argumentam que a COP26 poderia ser mais importante que o Acordo de Paris. Assinado em 2015, ele já foi ratificado como lei por 193 países.

A Folha apurou que a tensão deixada pelo brexit tem impactado a relação da presidência britânica com os europeus. A União Europeia (UE) já protagonizou a discussão sobre financiamento climático em edições anteriores da conferência –especialmente diante da ausência americana nos anos de governo Trump. Na COP26, no entanto, o bloco mantém silêncio sobre o possível aumento dos recursos para ações climáticas.

A percepção dos negociadores é que os britânicos –que pertenciam à União Europeia quando o Acordo de Paris foi assinado– agora buscam deixar a sua própria marca na negociação climática. A UE não estaria disposta a colaborar com o feito, que tem sido visto por diplomatas de diferentes blocos como uma tentativa de reescrever Paris.

"Precisamos provar aos países em desenvolvimento que nossos esforços em financiamento têm credibilidade. Não apenas a quantidade exata de dinheiro, mas a estrutura que providenciamos para isso", afirmou o vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans.

No fim da tarde de quarta (10), foi publicada uma declaração conjunta dos Estados Unidos e da China reafirmando compromissos pelo clima. Ela foi interpretado nos corredores da conferência como um sinal político de que as duas nações estão dispostas a chegar a um acordo na COP26 e não querem ser apontadas como culpadas por um eventual fracasso.

A tensão política entre os dois países gerava o receio de que eles poderiam deixar de cooperar em Glasgow. A declaração, assim, busca indicar, segundo analistas da COP26, que a trava nas negociações não vem dos dois líderes do ranking de emissões globais de gases-estufa.

Questionado pela Folha quanto ao impacto da declaração conjunta nas negociações, o enviado especial de clima dos EUA, John Kerry, disse que espera ajudar [a conclusão da COP]. "[Comunicamos] nosso trabalho conjunto para vencer esse desafio e cumprir o Acordo de Paris", afirmou.

"É um sinal político muito poderoso. Está tendo um impacto nesta conferência, nos ajuda a chegar num acordo", avaliou Timmermans.

Embora não tenha trazido avanços significativos em itens pendentes da regulamentação do Acordo de Paris, o último esboço da decisão da COP26, publicado na quarta, propôs 71 artigos. O texto abarca as seções: ciência, adaptação, mitigação, financiamento, perdas e danos, implementação e colaboração.

A abrangência dos temas foi exemplificada por críticos através da comparação com o tamanho do texto do Acordo de Paris: ele tem apenas 29 artigos.

"O texto de Glasgow tem de permitir agir e não adiar. A linguagem deve ser mais operacional e executiva e não intencional. Glasgow tem de implementar Paris e não querer substituir Paris", avalia Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente.

Segundo especialistas em direito internacional que observam as negociações, a validade de decisões mais recentes se sobrepõe ao Acordo de Paris, desde que não elas não o contradigam.

As críticas à presidência britânica se acumulam desde o final da semana passada, quando foi publicado o primeiro rascunho da decisão, na forma de lista de itens demandados pelas nações mais vulneráveis, países em desenvolvimento e também pelos protestos das ruas –ao longo da COP houve duas marchas em Glasgow, além de manifestações em diversas partes do mundo.

As novidades no texto foram recebidas com ânimo por observadores das negociações. Eles elogiam a disposição da presidência britânica de incorporar questões levantadas por cientistas e ativistas, como a necessidade de limitar o aquecimento em 1,5ºC (e não em 2ºC, como permite Paris), o reconhecimento da urgência, o encaminhamento de ações para adaptação climática e para perdas e danos.

"Foram ‘ticando’ caixinhas de várias coisas que as pessoas queriam ver: justiça climática, jovens, povos indígenas, oceanos. [O texto] reflete muita coisa que estava fora das salas de negociação", destaca Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa.

"Nunca teve financiamento para adaptação e perdas e danos [em decisões anteriores], agora está incorporado", afirma. "Mas o conteúdo não é suficiente, apenas duas vezes menciona a palavra ‘decide’, então vão ter que trabalhar para colocar algo mais concreto."

Para Ana Toni, diretora do Instituto Clima e Sociedade, o texto é "muito vago". "Não tem nada forte sobre financiamento, que é o grande impasse. Dá a sensação de enfraquecimento do tema multilateral. Uma negociação multilateral se dá a partir da confiança entre as partes", afirma.

"Se chegam aqui querendo mais sem terem entregue o que foi acordado no passado –como os US$ 100 bilhões prometidos pelos países ricos em 2009 e que ainda não foram totalmente arrecadados– não se tem confiança", completa.

Um negociador do bloco de economias emergentes classificou o trabalho da presidência como uma "lista de presentes do Papai Noel", que, no entanto, deve ser esquecida pelos países antes do Natal.

Mas a preocupação nos corredores da conferência é que o tom otimista não prospere, já que não há consenso suficiente entre os países para acompanhar as propostas do texto escrito pelos britânicos.

O receio dos países é que um resultado fraco na conferência abale a confiança no regime multilateral, após a geração de expectativas na mídia internacional sobre a importância da conferência –que ocorre menos de três meses após o IPCC (Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas) ter revelado que as emissões de gases-estufa precisam cair imediatamente.

Nos corredores da conferência, negociadores britânicos ouvidos pela reportagem defenderam a proposta de uma "decisão da COP26", lembrando que as COPs anteriores também tiveram suas respectivas decisões e que o instrumento é necessário para garantir a aceleração da ambição das metas climáticas para mitigação, adaptação e financiamento.

Também procurada, a assessoria de comunicação do Reino Unido afirma não comentar negociações em andamento.

A jornalista viajou a convite do Instituto Clima e Sociedade.

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