Provavelmente sem saber, paulistanos caminham sobre as águas

Rios e córregos retificados e canalizados passam despercebidos em São Paulo

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São Paulo (SP)

Quem circula pela avenida Professor Frederico Herman Júnior, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, provavelmente não sabe que está contrariando as leis da física e caminhando sobre as águas. Debaixo do asfalto, escondido, está o córrego das Corujas, que aparece ao ar livre saindo de uma manilha de concreto a menos de dois quilômetros dali, na praça batizada com o mesmo nome.

O córrego, que vai crescer e mudar de nome ao se juntar ao rio Pinheiros, é só um das centenas de cursos de água engolidos pela paisagem urbana da maior metrópole brasileira. O cenário era muito diferente em 1554, quando São Paulo foi fundada na colina entre dois rios: o Tamanduateí e o Anhangabaú. Eles foram centrais para o nascimento da cidade, servindo de acesso às terras do interior do estado, até então inexploradas pelos colonizadores.

Especialmente para os moradores da região central da cidade, onde a maioria dos cursos de água estão enterrados, pode ser difícil entender a cara da hidrografia paulistana. O modelo de urbanização adotado ao longo de 469 anos passou por cima dos rios, tentando domesticar as águas que estavam pelo caminho.

Água cai em um canal de concreto saindo de manilha, por onde passa um riacho. Canal é cercado por árvores.
Canalizado, o Riacho das Corujas corre ao lado de uma praça na Vila Madalena, mas passa despercebido em meio ao concreto - Zanone Fraissat/Folhapress

O pesquisador Anderson Nakano, professor do Instituto das Cidades da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), afirma que três coisas caminham juntas na estruturação de São Paulo: a expansão da cidade, a segregação dos mais pobres em periferias e a canalização dos rios.

"Houve uma ocupação do espaço sem respeitar a presença de rios, córregos e nascentes. Eles vão sendo aterrados e ocupados com construções", diz ele. Um exemplo é o próprio rio Anhangabaú, que foi canalizado e hoje passa debaixo da avenida 23 de Maio. "Esses rios não são vistos como algo dinâmico, com aumento da vazão no período de chuvas e diminuição no período de seca."

O desenvolvimento concentrado em grandes avenidas e rodovias fez com que mesmo projetos que poderiam comportar melhor esse dinamismo fossem deixados de lado.

O primeiro plano de canalização do Tietê previa grandes parques nas margens, comportando a variação e fazendo com que a população tivesse uma convivência com o rio. Mas, em vez disso, é adotado um plano diretor voltado a grandes avenidas e rodovias —e, no lugar do espaço verde, o Tietê ganha uma marginal.

"É um processo de urbanização que vai acontecendo para abrir terras para empreendimentos imobiliários e automobilísticos, em vez de pensar em como reservar espaço para as águas na cidade", afirma o professor. "Aí, em época de chuvas, elas voltam a reivindicar o seu lugar, só que esses espaços estão ocupados por avenidas."

Em uma cidade com 11.600 km de rios e córregos, isso acontece com frequência. De acordo com dados do Centro de Gerenciamento de Emergências da Prefeitura de São Paulo, desde a primeira Operação Chuvas de Verão, entre o final de 1999 e o começo do ano 2000, foram registrados, em média, 874 alagamentos por ano entre os meses de novembro e abril.

De acordo com o engenheiro Pedro Algodoal, especialista no sistema de drenagem paulistano da Siurb (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras), mesmo chuvas rápidas causam alagamentos em bacias menores, como no Anhangabaú. No caso de bacias maiores, como Tietê e Pinheiros, o volume de chuva precisa ser maior para causar enchentes.

"Nós temos tornado nos últimos anos a cidade mais resiliente para alagamentos", afirma Marcos Monteiro, chefe da Siurb. "Então, hoje a gente já está muito mais preparado para suportar os grandes alagamentos e aqueles que ainda restam, em geral, são em pequenas bacias, em regiões menores." Entre novembro de 2021 e abril de 2022, a prefeitura registrou 490 alagamentos.

Uma série de fatores contribui para a ocorrência de enchentes. A ocupação de áreas de várzea e mananciais e a impermeabilização do solo com asfalto, cimento e calçadas fazem com que a chuva não tenha para onde ir. A retificação e a canalização dos rios e córregos também limita o espaço que esse volume extra poderia ocupar, além de fazer com que a velocidade da água aumente, o que dificulta a absorção. Até mesmo a falta de árvores entra nessa conta: em lugares arborizados, as folhas seguram muito da chuva, que chega ao solo bem mais devagar, o que também ajuda a evitar alagamentos.

O geógrafo Luiz de Campos Junior ressalta que essa ocupação inapropriada não acontece só nas favelas e periferias.

"Existe ocupação organizada, projetada em áreas que não deveriam ser ocupadas. Ninguém olha para um edifício moderno, bem projetado na Água Branca e fala ‘essas pessoas não deviam morar aqui’. Mas o problema é o mesmo de outras regiões: ocupação de áreas que não deveriam ser usadas para isso", afirma.

Ele é um dos criadores do projeto Rios e Ruas, que, desde 2010, mapeia os rios e córregos subterrâneos da capital paulista.

"Quando você tira a vegetação e põe o rio num cano reto, você aumenta a velocidade, a quantidade e a força da água. E depois quer construir piscinão para resolver o problema", aponta. "Você impermeabiliza a cidade inteira e para resolver isso você faz uma caixa de concreto enorme. É um absurdo essa desconexão dos processos naturais".

Segundo a Siurb, a capital tem mais de 50 destes reservatórios, construídos para armazenar grandes volumes de água e prevenir enchentes.

"Como todas as águas acabam indo para a confluência dos rios Pinheiros e Tietê, quanto mais impermeabilizado o solo está, mais rápido elas vão chegar ali. Sem nenhuma medida, você teria alagamentos enormes nessas regiões. Então, esses reservatórios servem para segurar [o volume das chuvas]", justifica Monteiro.

Para Anderson Nakano, o ideal seria pensar em obras mais amigáveis do ponto de vista urbanista. "Em vez de piscinões, pensar em lagos dentro de parques, por exemplo. Como acontece com o lago do Ibirapuera, que funciona como um lago de retenção da água da chuva. Por isso a gente vê pouca inundação na avenida 23 de Maio", explica.

Com isso também seria possível aproximar a população dos rios. "Não é transformar a cidade no que era antes. Ela vai continuar sendo um espaço urbano, mas você vai criar pontos de contato entre os moradores e o rio".

Campos Junior também defende que, onde for possível, sejam adotadas estratégias que reintegrem a cidade com a natureza. "No mundo inteiro estão reabrindo e renaturalizando os rios. As pessoas precisam ver a necessidade da relação com a água", analisa.

Ele dá a dica de que, sabendo procurar, em alguns pontos de São Paulo é possível encontrar pistas dos rios escondidos mesmo na região central.

No começo da Rua Frei Caneca, na Consolação, nem mesmo o barulho do trânsito consegue ocultar o estrondo da água correndo sob o asfalto. Ali tem uma cachoeira debaixo de uma escadaria —que já foi uma queda d'água natural do córrego Augusta.

A Siurb planeja construir um reservatório nesse ponto e, de acordo com Algodoal, essa cachoeira seria aberta e recuperada.

Em 2022, a prefeitura começou a publicar planos de drenagem específicos para cada uma das bacias da cidade —até agora, foram lançados 17 do total de 50. Uma das ideias do projeto, de acordo com o secretário, é que medidas diversas sejam implementadas.

A Subprefeitura da Sé já adotou algumas, como os jardins de chuva construídos na rua Major Natanael, no Pacaembu, para aumentar a permeabilidade do solo, e a escadaria verde no Viaduto Dona Paulina, que tem o objetivo de conter a intensidade da água da chuva.

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