Gelo derretendo é música para alguns ouvidos. Ouça!

Cientistas e músicos estão gravando os sons da água descongelando para documentar e prever os efeitos das mudanças climáticas

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Grayson Haver Currin
The New York Times

Assim que Martin Sharp abriu o arquivo, soube que o gelo passara o verão cantando.

Era 2009, e Sharp era glaciologista na Universidade de Alberta havia quase duas décadas. Alguns meses antes havia enterrado vários microfones na calota de gelo Devon, uma massa congelada mais ou menos do tamanho do estado de Connecticut situada no extremo norte do Canadá. Setes grandes microfones e sensores de GPS monitoravam o ritmo de derretimento do gelo superior da calota e vários monitores sísmicos acompanhavam o deslocamento da calota na Terra. De quebra, Sharp instalou um pequeno gravador Sony, torcendo para conseguir captar a essência da imobilidade gelada do lugar onde ele tão frequentemente trabalhava.

O resultado foi surpreendente. Uma escrevedeira-das-neves [um pássaro que vive em regiões árticas] pousou sobre o equipamento e cantou. Gaivotas sobrevoaram a cena. E lá embaixo, quando o gelo profundo foi derretendo gradualmente, uma sinfonia inesperada começou. A água escorria ao lado do microfone, criando um zumbido vertiginoso. Bolhas minúsculas formadas por ar preso dentro do gelo, possivelmente por séculos, estouravam sem parar, criando um allegro de estalos que evocavam as produções eletrônicas de Aphex Twin e do duo Autechre.

A borda externa da geleira Thwaites, na Antártida, onde o degelo está acontecendo particularmente rápido
A borda externa da geleira Thwaites, na Antártida, onde o degelo está acontecendo particularmente rápido - Nasa

Sharp começou a tocar uma gravação de 20 minutos desses sons durante suas palestras. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) pediu uma cópia, interessado em acrescentar contexto sonoro a discussões áridas sobre dados e políticas.

"A gravação abria para as pessoas uma outra forma de entender aquilo do qual eu estava falando, não limitada a apenas uma exibição de slides", disse Sharp, 64 anos, falando pelo telefone. "O som transmitia às pessoas como era estar lá."

Nos últimos anos, sons diversos e inesperados produzidos pelo gelo têm viralizado periodicamente: o fenômeno semelhante a um laser de alguém patinando sobre gelo fino, a sensação de tiroteio de gelo caindo num buraco congelado, os suspiros meditativos do gelo se formando e estalando em um lago sueco. Mas vários cientistas e músicos creem que os sons podem exercer um efeito que ultrapassa o de simples objetos de curiosidade online.

Gravações dos sons de gelo se derretendo, geleiras rachando e do escoamento do gelo derretido podem ajudar na previsão da velocidade da mudança climática e da elevação do nível dos mares. Algumas pessoas esperam que a música criada com esses sons possa levar os ouvintes a repensar seu relacionamento com a natureza. Se mais pessoas puderem realmente ouvir a mudança climática com as canções antes desconhecidas do gelo em processo de desaparecimento, quem sabe se motivem a ajudar a preveni-la?

"Sou privilegiado porque posso ir a algum lugar e estudar essas geleiras. Mas como ficam as pessoas que só podem recorrer à imaginação?", disse Grant Deane, 61 anos, pesquisador na Universidade da Califórnia em San Diego.

Desde 2009 Deane vem criando métodos para utilizar gravações de gelo em derretimento e geleiras que se fragmentam —quando grandes pedaços racham e se separam da beirada do monólito, acima ou abaixo da linha d’água— para documentar e prever o ritmo de perda do gelo e concomitante elevação do nível do mar.

Evidentemente, o planeta vive em estado de fluxo constante, de modo que o derretimento de gelo e a fragmentação de geleiras são processos naturais que ocorrem com a mudança das estações ou épocas. Mas as geleiras que Deane estuda estão recuando em ritmo acelerado que ele atribui aos gases estufa, e ele acredita que é possível ouvir essa aceleração. Deane planeja construir 12 subestações ao longo do litoral da Groenlândia para mapear sonoramente o atrito do gigantesco manto de gelo que cobre a ilha.

Ele fez uma ressalva: a influência que esse tipo de pesquisa científica terá sobre o público é limitada.

"Quando pessoas como eu começam a falar sobre derretimento do gelo, parece algo distante e que não guarda muita relação com nosso cotidiano", disse Deane, que já contribuiu com gravações para instalações imersivas da artista canadense Mia Feuer. "Como as pessoas podem se preocupar com isso quando enfrentam problemas aqui e agora? A música é capaz de criar essas conexões."

Há quase duas décadas, a musicista norueguesa Jana Winderen faz um trabalho pioneiro, transformando suas gravações de geleiras e da terra e água que as cerca em álbuns carregados de emoção —comoventes "cartões postais" musicais enviados das massas de gelo que derrete e racha.

Em 2006, quando passava férias com sua família na Islândia, Winderen jogou um hidrofone debaixo da borda de uma geleira. Trata-se de um microfone selado que detecta mudanças de pressão submarina. Ela pediu silêncio às suas filhas, que estavam brincando na lama nas proximidades, para conseguir identificar a origem de sons de estrondo plangente.

"O som parecia ser de um motor barulhento. Olhei em volta para ver se havia um trator", disse Winderen, 57 anos, falando recentemente por vídeo de seu estúdio no sítio de sua família nos arredores de Oslo. "Mas entendi, pela primeira vez, que a geleira estava deslizando —muito, muito devagar— nessa água, sob os sedimentos. E o som tem uma presença, como uma criatura. Eu me apaixonei completamente.

Winderen processa gravações brutas e as converte em colagens extensas. Seus álbuns se desenrolam como poemas tonais, conferindo uma dignidade espiritual ao ambiente em transformação que a cerca. É o caso especialmente de "Energy Field", de 2010, que em alguns momentos remete a heavy metal sem percussão ou a um violino não afinado.

"Não estou registrando esse ou aquele som para a posteridade", disse Winderen. "Isso para mim não é interessante. É muito mais interessante estar lá fora e ouvir, entender o que está acontecendo e ter consciência do quanto ignoramos."

Para o veterano pesquisador e artista sonoro australiano Philip Samartzis, foi preciso uma nevasca antártica inusitada para ele aceitar o potencial político dos cantos do gelo. Samartzis visitou a Antártida pela primeira vez em 2010, com uma bolsa de artes, para mapear o ambiente acústico da estação de pesquisas Davis, uma das três estações da Austrália no continente.

Ele queria saber qual era o som da existência nessa extremidade da Terra.

Falando por vídeo durante férias na Nova Zelândia, Samartzis, 60 anos, explicou: "Tentei reproduzir o que vivenciei com a maior autenticidade possível. Logo, você tem gravações forenses muito detalhadas da estação —sem o vento, que eu era muito hábil em tirar."

Mas, como ele admitiu com um sorriso, "purificar" o som do lugar onde venta mais no mundo, extraindo o som do vento, não era muito autêntico. Quando ele retornou em fevereiro de 2016, sua intenção foi enfocar o próprio vento, registrando os modos em que ele pulverizava o lugar. Ele teve uma oportunidade durante a nevasca mais forte jamais testemunhada ali durante o verão austral. Com gelo e neve fustigando oito estações de microfones ao longo da tempestade, que durou 36 horas, o timbre de seu trabalho começou a se alterar.

Samartzis havia falado muitas vezes em tom de assombro sobre como o gelo antártico "canta", como sempre lhe pareceu dinâmico e curioso. Mas os rugidos e estrondos que ele registrou eram apavorantes, um testemunho desconcertante da fúria da mudança climática. Seu trabalho "Atmospheres e Disturbances", lançado em março, apresenta meticulosamente os sons do derretimento do permafrost, da contração das geleiras —e da atividade humana que parece exacerbar ambos os fenômenos— numa estação de observação situada nos Alpes suíços, a mais de 3,2 km acima do nível do mar.

Ouvir o desaparecimento é assombroso e arrepiante, como assistir a um programa de televisão sobre caça a fantasmas.

"Quando converso com cientistas sobre a mudança climática, todo o mundo já está farto de conversar. Essencialmente, todo o mundo já sabe, então as pessoas dizem ‘por que eu deveria ouvir você e seu relatório?’", conta Samartzis. "Essas gravações podem não ter precisão científica, mas são toda uma outra maneira de comunicar conhecimento, uma abertura diferente de experiência."

Mas pelo menos um pioneiro em retratar o gelo através da música receia que todo esse trabalho esteja chegando tarde demais. Que simplesmente captar essas canções de rendição e tocá-las por alto-falantes não conseguirá transmitir a grandeza do gelo. Mais de três décadas atrás o jovem produtor alemão Thomas Köner sentou-se ao pé de uma geleira da Noruega e ficou deslumbrado vendo a neblina subir e depois descer sobre ela, como enormes pulmões congelados respirando cuidadosamente.

Entre 1990 e 1993, Köner, que usa os pronomes elx ou el@, canalizou suas observações para uma trilogia de álbuns elogiados que reproduzem o som ambiente, evocando o assombro e desconforto de estar cercado por gelo que se eleva, se move e racha. Mas el@ acha que "Novaya Zemlya", seu álbum de 2012 inspirado em parte pelas geleiras do arquipélago ártico desse nome, pode ser seu último trabalho sobre o gelo. Em 1961 a União Soviética testou a maior bomba atômica da história nesse arquipélago. Para Köner, isso representa a verdadeira relação da humanidade com a natureza.

"Foi o fim, senão do caso de amor, pelo menos do objeto amado: a ideia desse mundo imaculado feito de gelo", disse Köner, 57 anos, falando por telefone de uma residência artística na Sérvia. "É tristíssimo, como se você tivesse perdido um ente querido. Mas você segue adiante."

Esse tipo de melancolia onipresente é o que leva Eliza Bozek, 30 anos, e vários outros músicos jovens a tentarem chegar às geleiras agora, sem adiar o projeto. Admiradora do trabalho emocionalmente texturizado de Winderen e Chris Watson (prolífico artista sonoro parcialmente responsável por "Frozen Planet", de David Attenborough), Bozek pensa que se as pessoas podem ouvir o gelo, isso cria uma oportunidade de consciência e, possivelmente, de uma alteração de comportamentos.

Falando desde Copenhague, Bozek, que assina sua música com o pseudônimo moltamole, comentou: "Os sons são muito belos, mas também são marcados pela violência arrastada. São declarações políticas que não estão disponíveis para ser ouvidas por nós se não forem gravadas. Esses sons criam espaço para a empatia."

Tradução de Clara Allain

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