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'Você está querendo morrer': pesca ilegal no Brasil ameaça vidas

Atividade que mira espécies ameaçadas cresce no país, enquanto pesca sustentável desponta como caminho para conter violência

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Tom Phillips
Atalaia do Norte (AM) | The Guardian

José Maria Batista Damasceno chora ao descrever suas décadas fugindo da morte na Amazônia brasileira. Uma vez, na região do rio Japurá, um pescador ilegal ameaçou matá-lo se ele não saísse da cidade. "É melhor você ir embora, ou vamos arpoá-lo", Damasceno lembra de ter ouvido.

Alguns anos depois, ele escapou por pouco de uma emboscada e da morte em outro canto remoto da selva —onde Bruno Pereira e Dom Phillips se encontravam no ano passado.

Peixes em chão de madeira
Pirarucus pescados na Terra Indígena Deni, no estado do Amazonas. No local, a pesca do peixe é sustentável - Eduardo Anizelli - 16.set.2021/Folhapress

"Foi muito, muito pesado", diz Damasceno, emocionando-se ao descrever como a falha do motor de seu barco o salvou de encontrar um bando de assassinos fortemente armados que estavam à sua espreita.

Damasceno não é um ativista indígena ou jornalista, como Pereira e Phillips, cujos assassinatos expuseram a batalha ambiental nas profundezas das florestas tropicais da América do Sul.

Ele é um engenheiro de pesca que dedicou sua vida a convencer pequenas comunidades ribeirinhas de que programas de pesca sustentável os beneficiariam mais do que os lucros rápidos e de curta duração oferecidos pelas máfias da pesca ilegal que saqueiam os rios e as terras indígenas da região.

Esses esforços para incentivar a vida verde colocaram Damasceno no lado contrário ao dos criminosos ambientais. Mas ele insiste em lutar.

"Sempre confiei em Deus para me proteger do mal —e aqui estou cumprindo minha missão", diz o defensor da pesca sustentável de fala mansa, que recentemente viajou à região onde Pereira e Phillips foram mortos, na esperança de promover a pesca sustentável lá.

O mundo em que Damasceno atua é um de perigos ocultos, regras implacáveis e enormes lucros ilegais, onde bandos altamente organizados de caçadores suspeitos de ligações com grupos internacionais de tráfico de drogas atacam espécies amazônicas ameaçadas, como o pirarucu.

Após os assassinatos do ano passado, membros do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro pintaram o crime como fruto de um conflito local, desconectado da devastação infligida à Amazônia por suas políticas antiambientais e desmantelamento das proteções indígenas.

Mas os assassinatos expuseram uma realidade muito mais feia: o desenfreado e altamente lucrativo comércio ilegal de peixes e animais silvestres que assola a tríplice fronteira isolada e sem lei do Brasil com a Colômbia e o Peru.

No centro desse comércio está Atalaia do Norte, a pobre cidade ribeirinha onde Pereira e Phillips iniciaram sua última jornada em 2 de junho do ano passado.

Como a cidade mais próxima da entrada do território do Vale do Javari, a segunda maior reserva indígena do Brasil, Atalaia serve de base para os ativistas indígenas cujo trabalho Phillips estava reportando quando foi morto.

Suas ruas esburacadas oferecem um retrato surpreendente da diversidade cultural e linguística de uma região que abriga seis povos indígenas, incluindo os matis e os marubos, além de 16 grupos com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior.

Nos últimos anos, Atalaia também se tornou parte fundamental de uma rede transnacional de caça proibida, com ligações suspeitas com as facções do tráfico que transportam grande quantidade de cocaína peruana pelo que a polícia hoje considera a segunda rota de contrabando de drogas mais importante do Brasil.

Após visitar Atalaia no ano passado, investigadores do Congresso concluíram que "associações criminosas ricas e fortemente armadas" e "criminosos altamente perigosos" haviam montado acampamentos na região, financiando grupos de pescadores ilegais que saqueiam as águas protegidas e florestas da reserva indígena onde a vida natural é mais abundante.

"Temos certeza de que a pesca ilegal na região do Vale do Javari não é de ribeirinhos tentando ganhar a vida, mas na verdade de organizações muito maiores, que fazem investimentos consideráveis e têm lucros exorbitantes", escreveram os investigadores.

As tentativas de Bruno Pereira de combater esse comércio ilegal organizando patrulhas indígenas o colocaram em rota de colisão com esses criminosos.

"É por isso que Dom Phillips e Bruno Pereira foram mortos", disse um amigo e ex-colega, Armando Soares, à Forbidden Stories, organização sem fins lucrativos com sede em Paris que coordena O Projeto Bruno e Dom. No início deste ano, a polícia citou um suposto chefe da pesca ilegal local como mentor do crime.

O bem mais valioso no Vale do Javari é o Arapaima gigas, nome latino de um peixe gigante de respiração aérea que os brasileiros chamam de pirarucu e os peruanos de paiche. Um dos maiores peixes de água doce do mundo, o pirarucu pode crescer até 3 metros de comprimento e pesar 90 quilos. É considerado uma iguaria nas principais cidades latino-americanas como Lima, São Paulo e Bogotá.

Anos de pesca predatória desregulada abalaram os estoques de pirarucu nas águas fora das terras indígenas protegidas do Javari —onde forasteiros são proibidos de entrar sem permissão e a pesca comercial é proibida. Como resultado, caçadores furtivos têm invadido cada vez mais o território para extrair enormes quantidades de peixes, bem como uma tartaruga do rio chamada tracajá.

"Eles usam pequenos barcos e viajam em pequenos grupos", disse Orlando Possuelo, indigenista que continua o trabalho de Pereira com os grupos de patrulha que lutam para barrar esses invasores. "São especialistas na área. Muitos deles nasceram lá [antes de o território ser oficialmente criado em 2001], então não é fácil encontrá-los."

Depois de serem contrabandeados para fora do território indígena em barcas de madeira cheias de gelo, os peixes são vendidos em diversas cidades fronteiriças, incluindo Leticia na Colômbia, Islandia no Peru e Benjamin Constant, cidade ribeirinha perto de Atalaia que leva o nome de um dos fundadores da república brasileira.

Uma investigação de um ano da Forbidden Stories descobriu que o comércio ilegal continua a florescer na região da tríplice fronteira, apesar das promessas do governo de acabar com o crime ambiental após os assassinatos no ano passado. Nenhum dos países possui controle rígido sobre a origem do pirarucu que está sendo comercializado.

O Brasil ainda não reabriu os escritórios de seu órgão ambiental, o Ibama, em Tabatinga, cidade mais próxima do Javari, depois que foi fechado em 2019. A regional de produção do Peru não tem fiscais de pesca em Santa Rosa del Yavarí, cidade peruana do outro lado do rio, em frente a Tabatinga. E as autoridades colombianas não controlam a quantidade de pescado das 40 empresas cadastradas para operar em Letícia, no lado colombiano da fronteira.

O escrutínio externo não é bem-vindo. "Não há nada aqui. Você está querendo morrer", alertou um homem a um repórter do OjoPúblico, do Peru, um dos 16 meios de comunicação envolvidos em O Projeto Bruno e Dom, quando visitou um entreposto pesqueiro na cidade fronteiriça colombiana em busca de peixe ilegal.

Ativistas dizem que a falta de controle quase total significa que o comércio ilegal de pescado continua prosperando, apesar do escândalo internacional causado pelos assassinatos de Pereira e Phillips.

"Acho que não mudou nada", disse Possuelo, lembrando que ativistas indígenas receberam denúncias de caçadores ilegais atuando no território Javari nos dias após o desaparecimento dos dois homens, em 5 de junho do ano passado.

Apesar dos riscos, Damasceno disse estar determinado a continuar sua cruzada para levar a pesca sustentável a alguns dos cantos mais isolados e perigosos da Amazônia brasileira, onde ele nasceu e cresceu.

Aos 65 anos, o engenheiro de pesca pretende se aposentar depois da que será sua última missão, e talvez a mais difícil: implantar projetos desse tipo em São Rafael, São Gabriel e Ladário, três comunidades de pescadores de onde vieram os supostos assassinos de Pereira e Phillips.

Isso envolve ajudar essas comunidades a criar três tipos diferentes de lagos que ajudarão a recuperar os estoques locais de pirarucu e, espera-se, impedir que os pescadores invadam as terras indígenas: "lagos de proteção permanente" onde a pesca é proibida; "lagos de manutenção", onde as famílias locais podem pescar para se alimentarem; e "lagos de manejo", onde uma cota de até 30% de peixes adultos pode ser extraída legalmente depois que seus números atingirem certos níveis.

"Se houver cem peixes, você pode pegar 30, para que os estoques possam se recuperar", disse Damasceno.

O engenheiro argumentou que a pesca sustentável é a única forma de evitar mais violência ao longo do rio Itaquaí e ajudar as famílias carentes a resistirem à tentação de fornecer peixes para o crime organizado. Como prova de que isso é possível, ele lembrou que o pescador que uma vez ameaçou arpoá-lo depois abraçou a pesca sustentável e se tornou um amigo próximo.

"Sempre digo que a pesca sustentável é a saída para esse tipo de conflito. Ela une as pessoas. Aumenta a consciência, abre as portas para igualdade, direitos e aceitação", insistiu Damasceno, que espera se aposentar para escrever um livro sobre o pirarucu assim que sua missão estiver concluída. Ele pretende chamá-lo de "A união das pessoas e a sustentabilidade na Amazônia".

Em uma recente viagem às aldeias de pescadores perto de onde Pereira e Phillips foram assassinados, Damasceno exortou os moradores a abraçarem a ideia de sobrevivência legal e de longo prazo, em vez de ganhos ilegais em curto prazo.

"Levantem suas cabeças. Vocês devem continuar", ele lhes disse. "Pensem nos seus filhos."

Reportagem adicional de Ana Ionova (The Guardian), Rodrigo Pedroso (OjoPúblico) e Cécile Andrzejewski e Mariana Abreu (Forbidden Stories)


O PROJETO BRUNO E DOM

Esta reportagem, do jornal britânico The Guardian, faz parte de O Projeto Bruno e Dom, consórcio internacional de imprensa envolvendo mais de 50 jornalistas de 16 organizações de mídia, sob coordenação da Forbbiden Stories, entidade que se dedica a dar continuidade ao trabalho de jornalistas assassinados no exercício da profissão. A Folha integra o consórcio.

O indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram mortos no Vale do Javari (AM) em 5 de junho de 2022.

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