Descrição de chapéu vale do javari

Viúva de Dom Phillips lançará ONG em homenagem a ele; leia depoimento

Um ano após assassinato, Alessandra Sampaio fala da dor da perda e da esperança inspirada no legado do trabalho do marido

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Alessandra Sampaio, viúva de Dom Phillips
The Guardian

Faz um ano que minha vida mudou drasticamente, com um telefonema de um amigo jornalista me contando que Dom tinha desaparecido no Vale do Javari. Pela preocupação na voz dele, percebi que era improvável que Dom ainda estivesse vivo.

Dom e eu sabíamos que sua pesquisa sobre atos criminosos contra a floresta tropical e seus defensores poderia colocá-lo em risco algum dia. Mas nunca acreditamos que isso realmente aconteceria. Dom seguia rígidos protocolos de segurança e era muito cuidadoso e focado nos detalhes de suas viagens, organizava os roteiros e me enviava todas as informações, assim como os contatos.

A busca por Dom e Bruno foi angustiante. Meu maior medo era que seus corpos nunca fossem encontrados. Rezei com toda a minha fé para que os encontrassem, para que pudéssemos seguir em frente e viver o luto.

Retrato de Dom Phillips e Alessandra Sampaio sorrindo
Alessandra Sampaio e Dom Phillips - Arquivo Pessoal

Minha memória desse período é enevoada. Há muita coisa que eu simplesmente esqueci. Lidar com demandas tão imensas era intenso e doloroso, e eu não conseguia suportar.

Minha irmã foi uma grande ajuda quando viajou de sua cidade e veio para minha casa. Ela filtrou todas as ligações de parentes, amigos e imprensa, falando em meu nome. Manteve-me atualizada sobre as notícias e me ajudou a gravar vídeos e mensagens.

A vida simples e os planos para o futuro que eu tinha com Dom acabaram, e a cada entrevista ou conversa eu absorvia a extensão da sua perda.

Uma vez que seus corpos foram encontrados, graças ao trabalho essencial das equipes de busca indígenas, tentei focar na etapa seguinte: a busca por justiça.

As pessoas me perguntam que tipo de justiça estou buscando.

Em primeiro lugar, quero ver as pessoas que fizeram isso –os assassinos e os mandantes– serem julgadas de acordo com a lei. Dadas as investigações, posso imaginar que serão condenadas. Sua condenação enviaria uma mensagem poderosa às organizações criminosas que atuam na região, convencidas de sua impunidade.

Apesar da repercussão do caso e da recente mudança de governo no Brasil, que me traz esperança, continuam existindo violência, ameaças e criminalidade no Vale do Javari e em outras regiões da floresta tropical. Então, para mim, a justiça ainda está longe de concluída.

Se os indígenas e as comunidades tradicionais que protegem a floresta ainda travam uma batalha desigual por suas vidas e seus territórios contra adversários muito mais poderosos, é sinal de que as mortes de Bruno e Dom ainda não provocaram mudanças positivas. Isso me deixa com raiva.

Essa tragédia que me deixou tão triste também trouxe coisas boas, como meu relacionamento com a esposa do Bruno, Bia, que hoje considero uma irmã. Isso me deu a oportunidade de conhecer tantas pessoas excelentes e solidárias, comprometidas com os direitos humanos e a causa ambiental.

Aproximei-me de alguns amigos jornalistas. Também me aproximei da família de Dom e seus amigos britânicos, pessoas maravilhosas em quem posso confiar sem hesitação. Minha família e meus amigos estão mais próximos do que nunca. Meu mundo se expandiu, e considero isso uma bela herança que Dom me deixou. Penso nele sempre, com amor e gratidão.

Naturalmente, aproximei-me daquilo que se tornou a paixão de Dom nos últimos anos: a Amazônia e os povos da floresta. Nós conversávamos muito sobre as ideias do livro que ele estava escrevendo.

Dom me contava suas experiências na floresta e o contato que teve com indígenas e ribeirinhos. Ele sempre voltava de suas viagens emocionado, como se tivesse alcançado um novo nível de compreensão das realidades que tinha visto e querendo saber mais, conhecer mais pessoas e entender seus pontos de vista.

Foi numa dessas viagens que ele conheceu Bruno, e acredito que foi um encontro intenso porque Dom era muito curioso e Bruno tinha anos de experiência de vida e trabalho em campo, na floresta. Os indígenas tratavam Bruno como um irmão, o que é raro. E Dom ficou maravilhado com ele, seu conhecimento e seu compromisso com o Javari.

Eles construíram um relacionamento mútuo, e Bruno disse a Beto Marubo, uma das lideranças indígenas locais: "Esse cara é um bom parceiro".

As pessoas que estão na luta precisam de aliados leais, e acho que Bruno e Dom perceberam que poderiam se ajudar a alcançar o mesmo objetivo: proteger esses territórios e seus povos e chamar a atenção para os crimes que estavam sendo cometidos.

Depois que Dom nos deixou, percebi que, como muitos, eu ainda sabia pouco sobre o assunto e comecei a buscar mais informações. Descobri, por exemplo, que, com o manejo respeitoso das plantas e do meio ambiente, os povos indígenas contribuíram para que a Amazônia seja o que é hoje: uma floresta viva, complexa, diversificada, com riquezas naturais e culturais inigualáveis e modos de vida que estão ligados à natureza e à sua conservação.

Há tanto conhecimento ancestral que não valorizamos porque nos é desconhecido. Tem gente bem intencionada e bons projetos socioambientais por aí que a gente ignora. Há tanto para aprender!

Por isso estamos nos preparando para lançar uma ONG em nome de Dom, o Instituto Dom Phillips, com o objetivo de compartilhar o que é a Amazônia e suas complexidades, por meio dos povos da floresta, e buscar formas de garantir sua proteção. Minha esperança é compartilhar minhas descobertas com qualquer pessoa interessada num movimento de aprendizado coletivo.

Alguns meses após a morte de Dom, eu estava conversando com uma liderança indígena que admiro muito e que me ajudou a entender a profundidade da luta pela conservação.

"A natureza é vida, e a única opção que temos é protegê-la e lutar pela vida", ele me disse.

Esse é o conceito que guiará meus objetivos e minhas ações.


O PROJETO BRUNO E DOM

Este texto, produzido pelo jornal The Guardian, faz parte de O Projeto Bruno e Dom, um consórcio internacional de imprensa envolvendo mais de 50 jornalistas de 16 organizações de mídia, sob coordenação da Forbbiden Stories, entidade que se dedica a dar continuidade ao trabalho de jornalistas assassinados no exercício do trabalho. A Folha integra o consórcio.

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