Tubarões e raias em extinção são vendidos no maior mercado da Amazônia

Partes dos animais são comercializadas ilegalmente também fora do Brasil; na Ásia, barbatanas valem até US$ 1.000 o quilo

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Tubarões inteiros expostos em uma banca do mercado

Espécie de cação comercializada em uma banca do mercado Ver-o-Peso, em Belém Lalo de Almeida/Folhapress

Belém

Às 3h30, no entorno do mercado Ver-O-Peso, em Belém, dezenas de pescadores ainda estão ávidos por vender suas mercadorias. "Vendo por R$ 10 o quilo, vai querer?", indaga um deles.

A "pechincha" da vez é o cação ou tubarão. Diferentemente de outros peixes ali expostos, esses têm as cabeças e barbatanas decepadas. "Esse aí é conhecido como filhote de tubarão", diz o vendedor. "Carne é boa para fazer moqueca", continua.

Uma análise de sequenciamento genético do peixe em oferta revela que ele é da espécie conhecida como cação-azeiteiro ou cação-mole (Carcharhinus porosus), considerada criticamente em perigo na Avaliação do Risco de Extinção da Fauna do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade).

O consumo de cação no Brasil é alto. Foram cerca de 17 mil toneladas em 2021 e 13 mil em 2022, considerando apenas as importações (não há dados oficiais sobre a pesca no país). Mas a população desconhece que essa pesca envolve práticas ilegais e ameaça os animais. Do ponto de vista comercial, são os chamados subprodutos ou partes do pescado que atraem maior interesse.

Homem carrega caixa de madeira na cabeça em meio a caixas com peixes expostos
Feira do peixe na madrugada ao redor do mercado Ver-o-Peso, em Belém - Lalo de Almeida/Folhapress

As barbatanas, ou seja, as nadadeiras do animal, são valiosas no mercado global, principalmente no asiático, com preços que chegam a US$ 1.000 o quilo (cerca de R$ 4.790). Do outro lado do mundo, elas são usadas no preparo de sopas e também na medicina tradicional.

"A pesca de tubarão ocorre principalmente pelo chamado ‘bycatch’, que é você mirar em um tipo de pesca e acabar pegando outros animais", explica Alberto Akama, ictiólogo (estudioso de peixes) e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

É dessa forma incidental que o Brasil autoriza a pesca de tubarão, mas, em situações em que a espécie capturada é ameaçada de extinção, a atividade passa a ser proibida. Assim, se um navio que está autorizado, por exemplo, a pescar atum acabar pegando um tubarão de espécie listada como vulnerável, ele precisa soltar o animal.

Na prática, porém, uma vez capturados, os tubarões ameaçados acabam não sendo devolvidos ao mar, mostram apreensões de órgãos de fiscalização e também estudos que identificam as espécies vendidas.

A Folha, durante visita ao Ver-o-Peso em maio, coletou 11 amostras de pescados comercializados como cação ou similares. Dessas, 9 eram de espécies criticamente em perigo, apontou análise feita em laboratório a pedido da reportagem.

Mão, com luxa, corta com uma tesoura ou pinça um pedaço da posta de peixe; ao fundo há tubos para guardar a amostra
A repórter da Folha Ana Bottallo coleta amostra de uma posta de cação comprada em feira no entorno do mercado Ver-O-Peso, em Belém; material genético foi enviado para análise para determinar a espécie do pescado - Lalo de Almeida/Folhapress

Para evitar punições e maximizar lucros, as embarcações muitas vezes trazem esses peixes à costa já sem a cabeça —o que dificulta a identificação da espécie— e sem as barbatanas —o que sugere que essa parte valiosa já foi direcionada ao mercado externo.

Essa "limpeza" também é irregular. Portaria do Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Pesca, de 2012, exige que os animais sejam desembarcados com todas as suas partes. O documento proíbe ainda o "finning", que consiste na retirada das nadadeiras de raias e tubarões e no descarte do restante do corpo, que tem menor valor comercial.

O aumento na ocorrência de apreensões, na esteira da intensificação das medidas de fiscalização, revela que a procura por esses animais está em alta.

Em junho deste ano, uma ação em conjunto da Polícia Federal e do Ibama apreendeu mais de 28 toneladas de barbatanas de tubarão em Santa Catarina.

E, em julho, a Segup (Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social) do Pará encontrou cerca de R$ 400 mil em pescado irregular, além de mais de 50 kg de barbatanas de tubarão avaliadas em R$ 239 mil. A pasta afirma ter investido em 84 novas embarcações nos últimos quatro anos para a fiscalização de crimes ambientais.

De acordo com as autoridades, as mercadorias tinha como destino a Ásia.

Além do cação, a reportagem identificou no Ver-O-Peso, o maior mercado da Amazônia, indivíduos de tubarão-martelo (do gênero Sphyrna) e Carcharhinus leucas, espécies consideradas, respectivamente, como criticamente ameaçada e vulnerável.

Peixes em caixas
Tubarão-martelo (Sphyrna spp.) e tubarão mako (Carcharhinus spp.) são considerados, respectivamente, como vulnerável e criticamente ameaçado pela lista da fauna brasileira do ICMBio; na foto, espécies são vendidas sem a cabeça no mercado Ver-o-Peso, em Belém, dificultando identificação - Lalo de Almeida/Folhapress

Como as informações sobre espécies que ocorrem na costa do Brasil e o estado de preservação delas são escassas (só há dados para 31 das 62 espécies avaliadas pelo ICMBio), muitos tubarões e raias ameaçados de extinção podem estar sofrendo com a pesca ilegal.

"Cerca de 60% das espécies de tubarões e raias recifais hoje estão ameaçadas de extinção, então a gente vê mesmo um cenário bem ameaçador", afirma a bióloga Luiza Baruch, que concluiu recentemente a sua dissertação de mestrado sobre o conhecimento etnobiológico (que alia dados de comunidades locais com biologia) sobre um tipo de raia, o peixe-serra ou espadarte (Pristis pristis e Pristis pectinata), na costa do Pará.

Os tubarões e raias são chamados em conjunto de elasmobrânquios. A maioria das espécies é vivípara (os filhotes nascem diretamente do útero) e demora a atingir a maturidade sexual.

Como são predadores de topo de cadeia, sua presença é fundamental para manter o equilíbrio dos ecossistemas, mas as populações em todo o mundo estão em declínio. "Com as capturas recentes, eles não têm chance de se reproduzir", explica Baruch.

O Ibama afirma que tem atuado para prevenir o comércio ilegal de tubarões e raias no país. Já o ICMBio diz que realiza fiscalizações nas UCs (unidades de conservação) marinhas, mas que "a maioria dos ilícitos ambientais ocorre nos oceanos fora dos limites e jurisdição das UCs".

Responsável pela administração do mercado Ver-O-Peso, a Prefeitura de Belém disse que cabe ao governo estadual a fiscalização sobre o que é vendido no local. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa do Pará disse que tem investido no combate e fiscalização de crimes ambientais.

O Ministério da Pesca e Aquicultura, também procurado, diz que está atualizando as normas vigentes para coibir a pesca ilegal, não reportada e não declarada.

Casos como o do peixe-serra, classificado como criticamente ameaçado, mostram os riscos da comercialização ilegal. Um levantamento feito pela bióloga Patrícia Charvet, da Universidade Federal do Ceará, e colegas identificou um declínio de cerca de 87% da população.

Baruch, que também estuda o peixe-serra, conta que se acredita que ele possa estar restrito atualmente à costa norte do Brasil, entre o Amapá e o Maranhão, enquanto, no passado, era encontrado em todo o litoral. "Mas, mesmo com restrição [de pesca], está cada vez mais raro ver o animal", destaca.

O rostro —serra ou katana— dessa espécie é altamente cobiçado, vendido por cerca de R$ 5.000, enquanto os dentes isolados chegam a R$ 50 a R$ 100 cada um. A peça é considerada um amuleto no mercado asiático, enquanto os dentes isolados são usados como esporas em rinhas de galo.

É possível encontrar na internet vídeos de pescadores atacando a golpes de machadinha peixes-serra ainda vivos, para remover a serra.

"Aqui na região norte do país temos a maior biodiversidade em termos de peixes. Infelizmente, em termos de fiscalização, ainda há um vácuo, faltam informações das espécies e pesquisadores. A Amazônia Legal inteira tem menos doutores do que a USP [Universidade de São Paulo]", lamenta Akama.

A educação ambiental também tem papel fundamental na reversão desse quadro. Nas resex (reservas extrativistas) da região, os pescadores são orientados a reconhecer e a ajudar na proteção das espécies ameaçadas. Em geral, porém, ainda evitam falar sobre os avistamentos.

"Podemos criar uma área protegida, mas se a comunidade não entender a importância daquela região para determinado animal, quais orientações ela deve ter e o que isso implica, não vai fazer nenhuma diferença em termos de conservação", conclui Charvet.


A pesca de tubarões no Brasil em números

  • 17 toneladas por ano de carne de tubarão são consumidas no Brasil
  • Mais de 28 toneladas de barbatanas foram apreendidas só em junho de 2023
  • 50% das espécies de tubarões e raias marinhas do Norte têm algum grau de ameaça
  • 9 das 11 amostras de tubarão coletadas pela Folha no mercado Ver-O-Peso (Belém) eram de espécies criticamente em perigo
  • 2.000 embarcações atuam no Norte do país, segundo o Ministério da Pesca e Aquicultura
  • Ásia é o principal destino da pesca ilegal de animais ou partes de animais na Amazônia

Fontes: ICMBio, Ibama, Ministério da Pesca e Aquicultura e Sea Shepherd Brasil

A reportagem foi realizada com o apoio da Earth Journalism Network.

Erramos: o texto foi alterado

O consumo de cação no Brasil foi de cerca de 17 mil toneladas, não de 17 toneladas, em 2021, como afirmava erroneamente versão anterior da reportagem.

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