Venda de 'grude', a bexiga do peixe, movimenta mercado milionário no Norte

Prática não é considerada ilegal, mas pode envolver a pesca de espécies ameaçadas de extinção da Amazônia

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Pescadores descarregam um tubarão, já sem cabeça e barbatanas, de uma embarcação no porto de Bragança, no litoral paraense

Pescadores descarregam um tubarão, já sem cabeça e barbatanas, de uma embarcação no porto de Bragança, no litoral paraense Lalo de Almeida/Folhapress

Bragança (PA)

Pouco antes das 7h de um domingo, o movimento em frente à zona portuária de Bragança, na região costeira do Pará, era praticamente inexistente. Poucas pessoas andavam pelas ruas do entorno do mercado municipal, com exceção das já estavam ali desde a noite anterior, bebendo e dançando música vinda dos alto-falantes de um carro estacionado.

No cais, uma única embarcação era lavada por funcionários depois do descarregamento de mercadoria na noite anterior.

Por volta das 8h, um barco atracou com mais ou menos uma dúzia de pessoas, que começaram a tirar do porão da frota o pescado. Dezenas de peixes, todos eles com a barriga cortada e sem as vísceras, chegavam ainda frescos.

Bem em frente, em uma bifurcação entre a avenida principal e uma rua que leva à igreja matriz, uma fachada de loja dizia: "Compra-se grude".

Grude é como é chamada a bexiga natatória dos peixes, cujo nome remete ao seu uso na fabricação de cola e como fixador para cosméticos. O produto é igualmente usado na China por supostas propriedades medicinais, nunca comprovadas cientificamente, à mesma maneira das barbatanas de tubarão. A demanda da Ásia gera um mercado milionário no Norte do Brasil.

Apesar de a exploração da bexiga não ser proibida, irregularidades podem permear essa prática, desde a pesca por embarcações ilegais até a captura de espécies ameaçadas.

"A pesca nesta região se divide em duas: a artesanal de menor escala, que é mais de subsistência ou para venda dos pescadores da região, e a industrial ou de larga escala, que visa principalmente o grude, que tem um preço muito alto no mercado internacional", explica Bianca Bentes, pesquisadora da UFPA (Universidade Federal do Pará).

"A bexiga [natatória] era muito usada como clarificante na indústria de vinhos, depois virou cola e agora tem esse uso como colágeno na medicina e indústria de cosméticos", conta também.

A pesca industrial e a sobrepesca afetam as comunidades de pescadores artesanais, uma vez que causam escassez de peixes para a subsistência e desequilíbrios ecológicos. "A pesca vem tudo do Norte [do país, na costa do Amapá] , e aí eles matam lá e depois não tem mais aqui para nós", relata o pescador Adiel Miranda, 63, morador de Ajuruteua, no município de Bragança.

A cadeia do grude também pode envolver infrações sanitárias, tanto na hora da retirada quanto de manipulação do produto, que é vendido seco ou fresco. Recentemente, a Segup (Secretaria de Segurança Pública e Defesa) do Pará apreendeu mais de 90 kg de grude na baía do Marajó, avaliados em R$ 252 mil (ou R$ 2.800 o kg), segundo agentes da Polícia Federal.

"É uma loucura. O pessoal compra isso aí que nem droga", relatou um pescador que estava no cais naquela manhã e que pediu para não ser identificado. Ele contou que a retirada da bexiga é feita nas próprias embarcações, ainda em alto-mar. "Eles tiram e já vem seca. É enviada para o pessoal de fora do país."

Entre as principais espécies de interesse econômico estão a pescada-amarela (Cynoscion acoupa) e a gurijuba (Sciades parkeri), esta última protegida. "Mas com a depleção destes estoques por causa da pressão pesqueira, muitas embarcações agora estão buscando outras espécies para retirada do produto, como a pescada-gó (Macrodon ancylodon)", explica Bentes.

Na literatura científica, há dados sobre o processo de retirada, produção e comercialização do grude em toda a costa norte do país, a mais produtiva no setor pesqueiro.

Muitos pescadores são explorados pelos donos das embarcações, que fornecem o material de pesca e o combustível, mas os obrigam a repassar grande parte da venda ou os próprios produtos, o que gera, em alguns casos, uma dívida constante com os patrões.

"Quem ganha mesmo é o ‘marreteiro’, o pescador ganha pouco, porque a gente tem que sair às vezes em dois ou três, passa oito dias no mar, e aí se fizer R$ 200 e repartir em três não sobra nada. Ele não, tem os R$ 200 só para ele", relata Miranda.

Questionado sobre legislações de proteção às espécies brasileiras e combate à sobrepesca, o Ibama reforçou que não há hoje proibição à exploração da bexiga natatória do pescado, mas que o órgão atua na fiscalização das embarcações irregulares.

O MPA (Ministério da Pesca e Aquicultura) disse, em nota, que não há embarcações estrangeiras atuando na costa brasileira do país de maneira regulamentada, isto é, legal.

A pasta afirmou também que "trabalha com diversas comissões e grupos internacionais" e "vem atualizando as normas de ordenamento vigentes de forma a coibir a pesca ilegal, não declarada e não reportada".

Já a Segup destacou que "nos últimos quatro anos investiu em 84 novas embarcações, destinadas para os municípios que têm área de rio, a fim de fazer a fiscalização de crimes ambientais".

A reportagem contou com o apoio da Earth Journalism Network.

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