EUA estão consumindo águas subterrâneas como se não houvesse amanhã

Estudo revela que esse recurso está se esgotando em grande parte do país e, em muitos casos, não se renovará

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Mira Rojanasakul, Christopher Flavelle, Blacki Migliozzi e Eli Murray
The New York Times

Com o aquecimento global, as preocupações se voltaram para o solo e para o ar, uma vez que as temperaturas em elevação intensificam os furacões, as secas e os incêndios florestais. Mas outra crise climática está se desenrolando invisivelmente, bem abaixo dos pés dos residentes nos Estados Unidos.

Muitos dos aquíferos que abastecem 90% dos sistemas de água do país, e que transformaram vastas extensões da América em algumas das terras agrícolas mais abundantes do mundo, estão sendo severamente esgotados. Essa diminuição ameaça causar danos irreversíveis à economia americana e à sociedade como um todo.

Uma avaliação abrangente, feita pelo The New York Times, do esgotamento de águas subterrâneas nos EUA revela que esse recurso vital está se esgotando em grande parte do país e, em muitos casos, não se renovará. Fazendas industriais imensas e cidades em expansão estão drenando aquíferos que podem levar séculos ou milênios para se reabastecer, se é que chegarão a se recuperar. Os estados e as comunidades já estão sofrendo os resultados disso.

Ponte passa sobre o leito seco do rio Arkansas perto de Garden City, no Kansas, um dos estados em que a falta de água subterrânea já prejudica os produtores de alimentos
Ponte passa sobre o leito seco do rio Arkansas perto de Garden City, no Kansas, um dos estados em que a falta de água subterrânea já prejudica os produtores de alimentos - Loren Elliott - 16.jun.23/NYT

A perda de água subterrânea está prejudicando estados como o Kansas, onde o principal aquífero, situado abaixo de uma área de 10,5 mil quilômetros quadrados de terra, não pode mais sustentar a agricultura em escala industrial. A produção de milho despencou, e, se esse declínio se espalhar, poderá ameaçar a posição dos Estados Unidos como superpotência alimentar.

No estado de Nova York, 2.400 quilômetros a leste do aquífero do Kansas, o bombeamento excessivo está ameaçando os poços de água potável em Long Island, onde se originou o moderno subúrbio americano, lar de cidades da classe trabalhadora, bem como dos Hamptons e suas mansões à beira-mar.

Em Phoenix, uma das cidades que mais crescem nos Estados Unidos, a crise é tão grave que o estado afirmou que não há água subterrânea suficiente em partes do condado para construir novas residências dependentes de aquíferos.

Em outras áreas, incluindo partes de Utah, da Califórnia e do Texas, a quantidade de água bombeada é tão grande que está fazendo com que estradas cedam, fundações rachem e fissuras se abram na terra. E, em todo o país, rios que dependiam de águas subterrâneas se tornaram córregos, gotejamentos ou apenas uma lembrança distante. "É uma situação sem retorno. É quase impossível explicar a importância disso", afirmou Don Cline, diretor associado de recursos hídricos do Centro de Pesquisas Geológicas dos Estados Unidos, sobre o desaparecimento das águas subterrâneas.

Essa análise se baseia em dados coletados de dezenas de milhares de poços de monitoramento de águas subterrâneas, amplamente dispersos pelo país, e muitas vezes, sem o monitoramento adequado, de dezenas de jurisdições federais, estaduais e locais.

Esse banco de dados revela a magnitude da crise de várias maneiras. Por exemplo, em todos os anos desde 1940, foram registrados mais poços com níveis de água em queda do que em alta.

Um dos maiores obstáculos é o fato de que o esgotamento desse recurso natural invisível, mas essencial, quase não é regulamentado. O governo federal tem um papel quase inexistente, e cada estado implantou uma enorme variedade de regras, muitas vezes pouco eficazes.

Também falta dedicação à análise do problema em escala nacional. Os hidrólogos e outros pesquisadores geralmente se concentram em aquíferos específicos ou em mudanças regionais.

Todas essas questões contribuem para viabilizar e reforçar as práticas que estão esgotando os aquíferos, como o cultivo de culturas que demandam muita água, como a alfafa ou o algodão, em áreas áridas, além da dependência excessiva de água subterrânea em zonas urbanas de rápido crescimento.

Oklahoma está trabalhando para determinar a quantidade de água remanescente em seus aquíferos, informação que os legisladores estaduais poderiam usar para estabelecer limites de bombeamento. No entanto, Christopher Neel, diretor de direitos hídricos do Conselho de Recursos Hídricos de Oklahoma, observou que as pessoas podem não apreciar que o governo lhes diga que suas terras estão ficando sem água subterrânea: "Se começarmos a divulgar esse tipo de dados, isso vai se refletir no valor das propriedades. Se mostrarmos que a água subterrânea de certa área pode se esgotar em dois anos, por exemplo, será impossível vender essa propriedade."

Para obter o quadro mais claro possível da situação das águas subterrâneas nos Estados Unidos, o The New York Times entrevistou mais de cem cientistas, profissionais envolvidos na criação de políticas e especialistas em hidrologia. Além disso, concatenou um banco de dados nacional com milhões de medições de poços usadas para determinar a profundidade das águas subterrâneas.

A análise desses dados, incluindo informações de poços monitorados há um século, permitiu ao Times cruzar os níveis de água com a cobertura das culturas e os padrões populacionais ao longo do tempo. Os resultados também foram comparados com as leituras de satélites sofisticados que podem estimar as mudanças nas águas subterrâneas a partir do espaço, medindo mudanças sutis na gravidade.

A mudança climática está agravando o problema. Ao esgotar aquíferos que levaram milhares ou até milhões de anos para se formar, regiões correm o risco de perder o acesso a essa água no futuro, justamente quando poderão precisar ainda mais dela, já que as mudanças climáticas tornam as chuvas menos previsíveis ou as secas, mais intensas. "De um ponto de vista objetivo, isso é uma crise, porque partes dos EUA podem ficar sem água potável", disse Warigia Bowman, professora de direito especialista em recursos hídricos da Universidade de Tulsa.

O símbolo mais visível da generosidade agrícola dos Estados Unidos é o sistema de irrigação por "pivô central", estrutura de metal sobre rodas que é conectada a uma bomba e que gira em torno de um ponto central. Um único braço equipado com aspersores pode ter até 800 metros de comprimento, distribuindo centenas de litros de água de um poço por minuto, 24 horas por dia, durante semanas ou meses a fio.

De um ponto de vista objetivo, isso é uma crise, porque partes dos EUA podem ficar sem água potável

Warigia Bowman

professora de direito especialista em recursos hídricos da Universidade de Tulsa

Embora grande parte da paisagem das Altas Planícies seja dominada por esses pivôs, quem visitar o condado de Wichita, no oeste do Kansas, notará que a presença destes é escassa. Isso porque há pouca água para ser distribuída, uma vez que os poços começaram a secar.

A produção de milho pode aumentar em mais de cinco vezes por hectare com a ajuda da irrigação. À medida que as fazendas locais consomem a água subterrânea, a produção de milho diminui, revertendo décadas de progresso.

A situação da região permite vislumbrar o futuro do setor agrícola dos EUA se as águas subterrâneas continuarem sendo exploradas. "Abusamos do aquífero, porque não sabíamos que ele se esgotaria", lamentou Farrin Watt, agricultor no condado de Wichita com 23 anos de experiência.

A agricultura americana nem sempre foi tão dependente da extração de grandes volumes de água do solo. Até meados do século passado, os agricultores confiavam nas chuvas ou na água dos rios, e o poços menores eram usados principalmente como complemento.

Mas os avanços na tecnologia de bombeamento depois da Segunda Guerra Mundial transformaram os Estados Unidos em uma potência agrícola, convertendo vastas regiões do Oeste e das Altas Planícies em terras férteis para cultivos como o milho e a alfafa. Essa transformação proporcionou rendimentos inatingíveis apenas com a água de superfície.

A base desse sucesso consistiu no bombeamento de uma quantidade de água muito superior à capacidade de reposição da natureza.

No fim da década de 1990, os agricultores do Condado de Wichita produziam de 11.250 a 11.750 quilos de milho por hectare, bem acima da média nacional. No entanto, esse feito teve um custo, exigindo que os agricultores drenassem o aquífero para irrigar suas plantações. A região recebe, em média, menos de 508 milímetros de chuva por ano, cerca de um terço a menos do que toda a área continental dos EUA —nem de longe o suficiente para substituir a água que está sendo bombeada do solo.

À medida que foram ficando sem água, os agricultores começaram a adotar gradualmente a chamada agricultura de sequeiro, que depende exclusivamente das chuvas.

Essa mudança se reflete nos rendimentos do milho ao longo do tempo: no ano passado, os produtores de milho do país inteiro colheram em média 11.600 quilos por hectare, mas no condado de Wichita a produção foi de apenas 4.700 quilos por hectare, a menor em mais de seis décadas.

Não é apenas o Kansas que está esgotando rapidamente seus aquíferos; a situação é a mesma em diversas partes do país.

Um pouco mais de um terço do suprimento total de água potável dos EUA é proveniente de águas subterrâneas, de acordo com dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS, em inglês). Mas as pequenas comunidades rurais são desproporcionalmente dependentes de poços, por causa de seu baixo custo em comparação com o tratamento e o transporte de água de rios e lagos. Dos 143.070 sistemas de água do país, 128.362 dependem principalmente de águas subterrâneas, segundo a Agência de Proteção Ambiental.

Os impactos da diminuição dos recursos de água subterrânea do país são visíveis de outra forma: o próprio solo está se desintegrando.

No sudoeste de Utah, na periferia de uma cidade de rápido crescimento chamada Enoch, estão os contornos de um bairro que parece ter desaparecido. Ruas e calçadas serpenteiam por lotes que antes eram destinados a casas, mas agora estão repletos de detritos e ervas daninhas que chegam à altura da cintura.

O Departamento de Pesquisas Geológicas do Arizona, associado à Universidade do Arizona, mapeou 270 quilômetros de fissuras no solo em todo o estado. Em 2007, um cavalo morreu ao cair e ficar preso em uma delas.

As autoridades locais da região de Houston informaram que a extração excessiva de águas subterrâneas e a extração de petróleo fizeram com que algumas terras afundassem mais de três metros ao longo das décadas. Na Flórida, o bombeamento excessivo às vezes cria sumidouros.

Mas Enoch, com cerca de 8.000 habitantes, é um exemplo gritante de subsidência. Durante o enorme crescimento imobiliário de meados dos anos 2000, uma incorporadora começou a planejar um loteamento de 800 casas, que acabou indo à falência, vítima da crise imobiliária. Foi então que funcionários municipais notaram uma rachadura peculiar na estrada, o que impediu que outras incorporadoras tentassem novamente. Foi constatado que o loteamento estava assentado sobre uma fissura terrestre.
O bombeamento de água pode provocar o afundamento da terra acima de um aquífero, levando ao desmoronamento do espaço deixado pela água removida. Quando esse espaço desaparece, a terra perde a capacidade de reter água.

Esse fenômeno, chamado subsidência, está ocorrendo no país inteiro, e mais de 80% dele é resultado do uso de águas subterrâneas, de acordo com o USGS. A agência relata que a subsidência afetou mais de 120 mil quilômetros quadrados de terra e cursos d'água nos Estados Unidos.

Conforme a terra afunda, fundações de casas, sistemas de esgoto e outras estruturas sofrem danos. Mas entre as consequências mais dramáticas do afundamento está o surgimento de fissuras. À medida que o solo mais maleável se desloca, às vezes um pedaço adjacente permanece imóvel, e o movimento resultante causa rachaduras na terra. "Estamos extraindo a água e ela está comprimindo o solo", explicou Rob Dotson, funcionário da prefeitura de Enoch.

É difícil detectar as fissuras antes que elas se abram, mas, uma vez abertas, não podem ser facilmente preenchidas ou fechadas. Pelo contrário, a tendência é que se tornem mais largas e longas.

O novo bairro de Enoch precisou ser abandonado, e foi detectada uma fissura em um bairro próximo, onde já há residentes.

No entanto, apesar de conhecer as consequências, Enoch não conseguiu suspender a extração de águas subterrâneas, decisão que está sendo repetida em todo o país, tanto em áreas urbanas quanto rurais. Afinal, há plantações para sustentar e comunidades como Enoch, que continuam crescendo. "As pessoas não param de chegar", afirmou Dotson. E essas pessoas precisam de água.

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