No Pará, ribeirinhas ganham qualidade de vida fazendo chocolate amazônico

Cacau colhido sem desmatar a floresta se transforma em produto de alta qualidade

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Acará (PA)

Numa pequena sala refrigerada e de paredes de madeira pintadas de branco, o aroma adocicado toma o ambiente. Ele vem do melanger, uma máquina que mistura massa de cacau com açúcar mascavo e transforma os ingredientes em chocolate escuro e brilhante.

A cena acontece periodicamente no coração da Amazônia, na comunidade ribeirinha Acará-Açu (PA), na qual vivem cerca de 160 famílias.

As responsáveis pela pequena fábrica de chocolates finos Acaráçu são oito mulheres, que se autodenominam Guardiãs do Cacau.

"Várias vezes eu fui para a cidade, mas não deu muito certo, não. Eu não conseguia me aceitar morando aqui, ver a minha vida aqui", conta Valdenilda Pereira, 30. "Aí, depois que a gente começou a fazer esse trabalho, eu comecei a olhar de outra forma, pensar de outra forma. Agora, se você me perguntar se eu quero ir embora daqui, não. Jamais".

Três mulheres, uma delas grávida, posam sob árvore de cacau no meio da floresta, segurando os frutos amarelos
Da esquerda para a direita: Luciene Gemaque, Valdenilda Pereira e Valdirene da Cunha, aprenderam a colher o cacau e fazer chocolates em 2021, após oficina - Jéssica Maes/Folhapress

Assim como as colegas chocolateiras, em 2021 ela foi convidada pela vizinha Luciene Gemaque, 34, para participar de uma oficina ali mesmo e aprender o passo a passo de todo o processo de fabricação —desde a colheita do fruto, passando pela fermentação lenta das sementes do cacau, a secagem, a torra e moagem delas, até chegar na transformação em doce.

O diferencial do cacau amazônico

A organização ao redor do cacau começou com o irmão dela, Zeno Gemaque, 39, que procurou o chocolatier amazônida César De Mendes, filho de mãe quilombola e pai ribeirinho, para vender os frutos produzidos na região. As árvores crescem naturalmente nas propriedades ou são plantadas uma a uma em meio à floresta.

"A sociedade tem hoje 38 parceiros, que são proprietários de pequenos terrenos aqui ao redor", explica Zeno, acrescentando que o trabalho da rede inclui oferecer qualificação para os produtores. "A gente vai na propriedade, faz um treinamento sobre a colheita, o ponto certo de maturação do cacau, a seleção dos frutos que são bons para a produção de chocolate fino e os que não são".

As sementes (ou amêndoas) que não servem para a produção refinada são vendidos, enquanto as outras são coletadas e levadas para em porções de 300 a 450 kg para cochos de fermentação que ficam ao lado da fabriqueta. Essa etapa dura, em média, seis dias.

"Nesse período é que acontece toda a mágica. A gente pega um cacau que ia ser comercializado como um mercado de commodities e transforma ele em um produto de alto valor agregado. Praticamente a mesma coisa do vinho, por exemplo".

Para quem possa achar que a comparação com a bebida é exagerada, De Mendes —que tem uma fábrica de chocolates finos e foi quem deu o primeiro curso para as Guardiãs do Cacau— aponta a influência do terroir da região nos chocolates amazônicos.

"As variáveis geográficas, que são solo, água, luz, vegetação do entorno, elas geram uma microbiota, um equilíbrio microbiano. Então, quando [as amêndoas] vêm para os cochos de fermentação, esses micro-organismos vêm junto", afirma. "Os micro-organismos que atuam na fermentação do cacau são muitos. Aqui, na Amazônia, são em torno de 150. Na média, no mundo, são 78".

Menos de dois anos depois da oficina com De Mendes, são vários os produtos cuidadosamente organizados em uma estante dentro da fabriqueta à beira do rio: barrinhas de cacau puro, chocolates meio amargos (com 70%, 60% e 50% de cacau na composição), chocolate ao leite, castanhas-do-pará ou doce de cupuaçu cobertos de chocolate. Da colheita até o produto final, são cerca de 25 dias.

Mobilização comunitária

Luciene conta que a ideia da fábrica só foi para frente porque partiu da própria comunidade, ao contrário de projetos externos. "Normalmente, o modelo já vem pronto e eles dizem o que a gente tem que fazer. Ninguém pergunta sobre o que nós já fazemos, o que já tem no nosso quintal", relata.

"Tem lugares aqui que, para [a mensagem] chegar, tem que ser a gente", diz. "A pessoa se sente tão à margem que para conseguir envolvê-la dentro de um processo como esse, não é tão simples".

O processo de convencimento passou pelo empoderamento das mulheres e o convencimento dos homens, que muitas vezes não queriam deixar que as esposas se envolvessem com a atividade.

Apesar de o novo negócio ainda não ser mais do que um complemento na renda, o cacau mexeu com a comunidade. Alguns jovens criaram um grupo para discutir cultura e conscientização, outros estão produzindo mudas de espécies nativas, mulheres estão tentando o artesanato e nove famílias estão se mobilizando para transformar seus quintais em agroflorestas.

"A gente está plantando coisas que ninguém mais está plantando", conta a fundadora do grupo, Izabela da Cunha Campos, 25, que também é chocolateira e presidente da associação de moradores da comunidade. Ela diz que nas agroflorestas são priorizadas espécies locais, ao invés de tentar plantar em solo amazônico o que vem de fora.

Ela, que sempre gostou de mexer com a terra, hoje tem no quintal muito do que antes precisava comprar —mas garante que o objetivo da iniciativa não é lucro. "O nosso projeto tem que ser para nossa qualidade de vida, para nós vivermos bem", afirma.

Para a mãe de Izabela, Valdirene da Cunha, 46, que também é Guardiã do Cacau, valeu a pena todo o esforço de acordar às 3h e queimar vários liquidificadores até conseguir colocar a fábrica de chocolates de pé.

"A sensação é que tudo isso que a gente começou incentivou outras pessoas a fazerem coisas diferentes. Viram que dentro da nossa comunidade, que é ribeirinha, é possível ter um lazer, ter algo bom pra comer", conta. "Nossa intenção não é ficar nesse grupinho que a gente tem, de oito mulheres. É levar para outras famílias, para outras comunidades".

A economia da floresta em pé

Essa potencial multiplicação ajudaria a fortalecer ainda mais uma forma de organização econômica que passa ao largo dos registros formais.

"Nós sabemos que essa economia da sociobiodiversidade da Amazônia, emprega efetivamente muita gente e ela não é capturada pelas estatísticas oficiais", afirma o coordenador do portfólio de economia de baixo carbono do Instituto Clima e Sociedade, Gustavo Pinheiro.

O Pará é líder na produção de cacau no Brasil. Segundo o Levantamento Sistemático da Produção Agrícola de 2022, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), o estado responde por 50,68% do total.

Um estudo recente do braço brasileiro do World Resources Institute mostra que o país pode parar o desmatamento na Amazônia e, simultaneamente, ter crescimento econômico em todos os principais setores se fizer uma transformação em larga escala.

As mudanças incluiriam utilizar técnicas de agropecuária sustentável em áreas produtivas já existentes; restaurar regiões degradadas; impulsionar tecnologias de baixo carbono; e investir em bioeconomia.

Assim, de acordo com a análise, o PIB da Amazônia Legal poderia crescer mais de R$ 40 bilhões por ano até 2050, na comparação com a manutenção do sistema produtivo atual, e seriam criados 312 mil novos empregos, beneficiando comunidades locais.

A repórter viajou a convite do Instituto Clima e Sociedade.

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