Chapada dos Veadeiros tem fauna ameaçada por agronegócio

Além de avanço da monocultura, atropelamento de animais em rodovias no entorno põe espécies em risco

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Alto Paraíso de Goiás (GO)

Nos quase 800 quilômetros de estrada de Uberaba (MG) a Alto Paraíso de Goiás (GO), a paisagem é a mesma: plantios de monocultura, principalmente de soja, estendem-se por todo o horizonte.

Esse uso da terra se intensifica ao norte de Brasília, a cerca de 230 quilômetros da entrada da maior área de conservação do cerrado no país, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Os fragmentos de vegetação nativa são esparsos, e a fauna local vive em constante ameaça tanto pelo avanço da agricultura quanto pela movimentação intensa nas rodovias.

O parque tem mais de 240 mil hectares de extensão e inclui diversas espécies endêmicas (que só ocorrem em uma determinada região).

Cangambá (Conepatus semistriatus) atropelado na rodovia Chico Xavier (BR-050), que liga o norte de Minas a Goiás, na altura do município de Planaltina (GO), com plantação de soja ao fundo
Cangambá (Conepatus semistriatus) atropelado na rodovia Chico Xavier (BR-050), que liga o norte de Minas a Goiás, na altura do município de Planaltina (GO), com plantação de soja ao fundo - Ana Bottallo/Folhapress

Mas mesmo essa biodiversidade não está de todo protegida, segundo afirmam cientistas e ativistas ambientais da região.

O cerrado é o bioma brasileiro que mais sofreu perda de área, com cerca de 50% da sua distribuição perdida em menos de 30 anos. Recentemente, o bioma enfrentou a maior quantidade de queimadas desde 2012, artifício utilizado para abrir áreas para produção agrícola. Com a seca, o fogo perde o controle e encosta em áreas de preservação ambiental, como a APA (área de preservação ambiental) Pouso Alto, colada ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

Para a bióloga Vívian Braz, professora da Universidade Evangélica de Goiás, a paisagem tipicamente savânica do cerrado faz com que ele seja considerado muitas vezes como "menos digno de preservação".

Na verdade, o cerrado possui diversas fisionomias, entre as quais os campos sujos e campos limpos —hoje restritos a alguns parques nacionais—, as matas de galeria e buritizais, os campos rupestres. Esta última é a que sofre mais modificação para formar pastagens para gado.

É em algumas dessas formações vegetativas que vivem as espécies endêmicas do bioma, só encontradas ali. Braz analisou, em 2008, a distribuição das populações de aves encontradas na área do parque.

"A modificação da paisagem, sem dúvida, pressiona ainda mais essas populações", explica, contando que no parque vivem mais de 300 espécies de aves. "O que eu vi é que, nos últimos dez anos, o avanço da monocultura está pressionando o parque, que já estava ameaçado."

Essa pressão, mesmo no entorno da área protegida, pode levar à extinção de algumas espécies mesmo dentro da unidade de conservação.

De volta recentemente, ela ainda não possui dados concretos, mas já observa que algumas espécies que eram frequentemente observadas na área do parque já não são vistas. Uma das espécies é o pato-mergulhão, que hoje possui apenas três populações não conectadas na região.

Além do avanço da monocultura, as queimadas ocorridas nos últimos anos ameaçam a biodiversidade. "Uma das espécies que monitoro é o galito (Alectrurus tricolor), que vive e tem como local de reprodução os campos nativos, uma das vegetações que mais sofrem com os incêndios", afirma.

Segundo o ecólogo e diretor técnico da AVE (Associação Amigos da Chapada dos Veadeiros), Nicholas Saraiva, a falta de continuidade física entre os fragmentos de cerrado e o parque, as chamadas áreas de amortecimento, deveriam também ser preservadas.

"Hoje temos alguns municípios da Chapada como Cavalcante [norte do parque], o que mais perdeu área de cerrado em 2020, segundo os dados do MapBiomas: foram mais de 25 hectares. E são áreas de plantação de soja que estão colando no parque", afirma.

O ecólogo avalia que as políticas que enfraqueceram a capacidade de fiscalização do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente nos últimos anos também dificultam ações concretas contra o desmatamento ilegal. "As pessoas são estimuladas diariamente [a pensar] que a proteção ambiental é um entrave para o desenvolvimento, mas se esquecem dos benefícios, da geração de valores de biodiversidade, do carbono, da produção de água", diz.

Procurado, o Ibama não se manifestou sobre o desmatamento ilegal ocorrido dentro e fora da área do parque.

De acordo com a Secretaria do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad), o governo realiza operações para conter a especulação imobiliária em todo o estado, inclusive em áreas como o Vale da Lua, no entorno do parque, com aumento dos esforços a partir de janeiro deste ano. "Ao todo, quatro edificações e uma área total de 1,7 hectare foram embargadas com auto de infração no valor de R$ 80 mil, no dia 13 de janeiro deste ano", disse o órgão.

Ainda, em 2020, a secretaria disse ter autuado mais de 30 loteamentos irregulares com multas em valores ultrapassando R$ 5 milhões. "Esse tipo de ação gera impacto ambiental muito expressivo, seja pela ampliação desordenada da área urbana, seja por consequências indiretas, como impermeabilização do solo e redução da disponibilidade hídrica", disse a secretária do Meio Ambiente de Goiás, Andréa Vulcanis.

Outro problema enfrentado pela fauna local é o atropelamento. Anualmente, segundo um estudo feito por Braz em 2016, quase 900 animais são atropelados só na área de entorno do parque, a maioria répteis, aves e mamíferos, como o lobo-guará, animal símbolo do cerrado.

Para tentar reduzir as mortes por atropelamento, a ONG Associação Amigos da Floresta lançou uma campanha chamada Eu Desacelero na Chapada. Em 2021, ela obteve uma vitória na Justiça obrigando a concessionária responsável pelas rodovias GO-239, GO-118 e GO-010, a colocar sinalização para redução da velocidade, radares e ainda criar passagens para os animais.

Segundo um estudo multicêntrico publicado em novembro de 2021 na revista Global Ecology and Biogeography, as populações de animais mais vulneráveis para extinção por causa de atropelamentos nos próximos 50 anos são de mamíferos de grande porte, como o lobo-guará, com risco de extinção de 34%, e a jaguatirica, com risco de extinção de até 75%.

"Além das sinalizações e dos redutores, nossas ações visam blitze educativas, eventos comunitários e projetos, como um organizado pela Universidade Federal de Brasília, para apropriação dos moradores para a conservação da biodiversidade local", afirma Flávia Cantal, vice-presidente da Associação Amigos da Floresta.

Para Braz, a comunidade local sabe da importância de manter o cerrado de pé. "Tem muitas pessoas que vivem do turismo e da produção sustentável. Embora ali a pressão do agronegócio seja forte, talvez seja por causa da população que o parque ainda resiste", diz.

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