Países planejam para 2030 o dobro da produção de combustíveis fósseis permitida pelo Acordo de Paris

Países projetam 110% mais petróleo, gás e carvão no fim da década do que o necessário para limitar aquecimento global a 1,5°C

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São Paulo

Planos governamentais de todo o mundo indicam que a produção de combustíveis fósseis em 2030 deve ser o dobro do que seria permitido para cumprir o Acordo de Paris.

Um novo relatório, publicado nesta quarta-feira (8), aponta que países devem produzir 110% mais petróleo, gás e carvão no final da década do que seria necessário para limitar o aquecimento global a 1,5°C e 69% mais do que seria consistente com um planeta 2°C mais quente.

Esses percentuais se traduzem, respectivamente, em 22 GtCO2eq (bilhões de toneladas de gás carbônico equivalente, unidade de medida que soma os gases que causam o aquecimento global) e 17 GtCO2eq a mais emitidos em relação ao que seria necessário para cumprir as metas de temperatura.

As projeções apontam ainda que até 2050 a magnitude da lacuna de produção chegue a cerca de 29 GtCO2eq e 22 GtCO2eq, respectivamente.

O Acordo de Paris, firmado em 2015, tem como objetivo manter o aumento da temperatura média global "bem abaixo dos 2°C acima dos níveis pré-industriais e buscar esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C". A medida é necessária para reduzir significativamente os riscos e impactos das mudanças climáticas.

Esta é a quarta edição do relatório da Lacuna de Produção, elaborado desde 2019 para mostrar a grande discrepância entre a produção planejada de combustíveis fósseis pelos países e os níveis de produção globais necessários para frear a crise do clima.

O documento é produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Instituto Ambiental de Estocolmo (SEI, na sigla em inglês), Climate Analytics, E3G e Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável.

Bomba para extração de petróleo em meio à poeira
Bomba para extração de petróleo no estado do Texas, nos Estados Unidos - Reuters/Angus Mordant

A ciência aponta há décadas que é essencial que haja um corte drástico na quantidade de dióxido de carbono que é jogada na atmosfera para evitar um aquecimento catastrófico do planeta. Apesar disso, as emissões de CO2 —quase 90% das quais são provenientes de combustíveis fósseis— continuam crescendo e chegaram a um novo recorde em 2022.

A nova análise leva em consideração os planos de 19 dos principais países produtores de combustíveis fósseis: Alemanha, Arábia Saudita, Austrália, Brasil, Canadá, Cazaquistão, China, Colômbia, Emirados Árabes, Estados Unidos, Índia, Indonésia, Kuwait, México, Nigéria, Noruega, Qatar, Reino Unido e Rússia.

Juntos, respondem por cerca de 80% da produção global de petróleo, gás e carvão. Esses dados foram, então, extrapolados para calcular uma estimativa global sobre o cenário futuro deste setor.

Entre estas nações, estão disponíveis as projeções governamentais para 9 países produtores de carvão (que representaram 93% da produção global em 2021), 17 países produtores de petróleo (74% da produção mundial) e 18 países produtores de gás (72% da produção global).

O levantamento diz que os principais países produtores de combustíveis fósseis se comprometeram a alcançar emissões líquidas zero e lançaram iniciativas para reduzir as emissões dessa produção, mas destaca: nenhum deles assumiu compromissos coerentes com o necessário para limitar o aquecimento a 1,5°C.

Ploy Achakulwisut, uma das principais autoras do estudo e cientista do SEI, aponta que a lacuna entre a produção de fósseis e a redução de emissões acordada no Acordo de Paris conflita com as metas climáticas e os compromissos de zerar emissões líquidas anunciados pelos países.

"Concluímos que a dimensão da lacuna de produção permaneceu praticamente inalterada em comparação com as nossas avaliações anteriores", diz. "Assim, apesar dos sinais encorajadores de que há uma transição emergente para energias limpas, a persistência da lacuna de produção global coloca em risco uma transição energética bem gerida e equitativa."

O secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres, diz que o novo relatório é uma "acusação alarmante do descuido climático descontrolado". "Os governos estão literalmente dobrando a aposta na produção de combustíveis fósseis; isso significa o dobro de problemas para as pessoas e para o planeta", declara.

"Não podemos enfrentar a catástrofe climática sem atacar a raiz do problema: a dependência dos combustíveis fósseis. As emissões de combustíveis fósseis já estão causando o caos climático que devasta vidas e meios de subsistência, e estamos a caminho de algo muito pior."

A posição brasileira

O Brasil é um dos que ajudam a puxar para cima essa tendência. O país é hoje o oitavo no mundo na produção de óleo, 27º na produção de gás e 29º de carvão.

Em março, porém, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciou planos para escalar a produção nacional e tornar o Brasil o quarto maior produtor global de petróleo.

Na mesma semana, o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, disse em entrevista à agência de notícias Bloomberg que a estatal "vai ganhar participação de mercado". "Podemos ser os últimos a produzir petróleo no mundo", afirmou.

Tanto a pasta quanto a petroleira estão no centro da polêmica em torno da exploração da bacia da Foz do Amazonas, que fica na chamada margem equatorial brasileira, considerada pela indústria uma nova fronteira. O início da perfuração depende de parecer do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais).

Silveira também vem anunciando incentivos à ampliação do mercado de gás no país e já se referiu ao petróleo e ao gás como "a riqueza do povo brasileiro que está no subsolo".

"Sem medidas para promover sua exploração e produção, não há empregos, renda ou desenvolvimento regional. Temos uma janela de oportunidade, não podemos perder o novo pré-sal que pode estar na margem equatorial e que será o passaporte para o futuro das regiões Norte e Nordeste do Brasil", disse em comunicado no início do ano.

O plano energético brasileiro prevê que a produção de petróleo cresça 63%, e a de gás, 124% entre 2022 e 2032, diz o Relatório da Lacuna de Produção.

Transição energética precisa ser acelerada

Apesar de o relatório tratar de duas dezenas de países, a contribuição dos maiores produtores é muito superior à dos outros. Três nações respondem por cerca da metade das emissões globais de gases-estufa provenientes da extração de combustíveis fósseis: China, Estados Unidos e Rússia.

Segundo dados da Agência Internacional de Energia, a China produz, assim como consome, cerca da metade do suprimento mundial de carvão.

Por sua vez, os EUA, a Rússia e a Arábia Saudita produzem cerca de 40% do petróleo mundial, enquanto americanos e russos são, de longe, os maiores produtores de gás do mundo.

O documento destaca que é preciso que os governos adotem metas de redução a curto e a longo prazo para a produção e utilização de combustíveis fósseis —e que aqueles com maior capacidade de transição para fontes renováveis devem fazer cortes mais rápidos.

"Uma transição equitativa da produção de combustíveis fósseis deve reconhecer as responsabilidades e capacidades diferenciadas dos países. Os governos com maior capacidade de transição devem procurar reduções mais ambiciosas e ajudar a financiar os processos de transição em países com capacidades limitadas", diz.

Esse tipo de divisão de responsabilidades deve ser tema de discussões em algumas semanas, durante a COP28, a cúpula do clima da ONU, que acontece a partir de 30 de novembro em Dubai, nos Emirados Árabes —uma potência petroleira que produz, em média, 3,2 milhões de barris por dia.

Assim como a bandeira levantada pela Petrobras, a COP reunirá outros grandes produtores que disputam a posição de quem vai ser o último a parar de extrair combustíveis fósseis.

"Esse é o cerne do problema. Os principais produtores não estão dispostos a fazer a transição da produção de combustíveis fósseis facilmente", afirma Achakulwisut.

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