Descrição de chapéu Financial Times União Europeia

Transição energética muda xadrez mundial da produção de commodities

Mudança transforma países menores e subdesenvolvidos em superpotências dos minérios

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Leslie Hook Harry Dempsey Ciara Nugent
Financial Times

A paisagem marrom-avermelhada de Tenke-Fungurume, uma das maiores minas de cobre e cobalto do mundo, na República Democrática do Congo (RDC), está coberta por dezenas de milhares de sacos empoeirados.

Os sacos empilhados na beira da estrada e ao lado dos prédios contêm um estoque de pó de hidróxido de cobalto equivalente a quase 10% do consumo anual do planeta –em valor de cerca de US$ 500 milhões.

Os estoques desordenados desse pó verde brilhante, um ingrediente fundamental nas baterias de carros elétricos, indicam como a RDC, maior produtora mundial de cobalto, está começando a flexionar seus músculos quando o assunto são os metais necessários para a transição energética.

Em abril, a CMOC, operadora chinesa da mina de Tenke-Fungurume, concordou em pagar US$ 800 milhões ao governo congolês para resolver uma disputa tributária que valeu à empresa uma proibição de exportações pelos últimos 10 meses.

Trabalhadores na mina Tenke-Fungurume, uma das maiores de cobre e cobalto do mundo, no sudeste da República Democrática do Congo - Emmet Livingstone - 17.jun.2023/AFP

E agora o governo da RDC está conduzindo uma ampla revisão de todas as suas joint ventures de mineração com investidores estrangeiros. "Não estamos satisfeitos. Nenhum desses contratos cria valor para nós", diz Guy Robert Lukama, presidente da empresa estatal de mineração da RDC, a Gécamines. Ele gostaria de ver mais empregos, arrecadação e atividades minerais de maior valor capturados pela RDC.

Na entrada de seu escritório, um mostruário de rochas altamente mineralizadas serve como prova de suas afirmações sobre as riquezas oferecidas. Lukama também defende a intervenção do governo para manter os preços do cobalto altos: "O excesso de oferta precisa ser organizado adequadamente. Cotas de exportação podem ser úteis", ele diz.

A RDC está longe de ser o único país nessa situação. À medida que o mundo passa de um sistema de energia baseado em combustíveis fósseis para um sistema alimentado por eletricidade e energia renovável, a demanda mundial por materiais como cobre, cobalto, níquel e lítio está transformando a sorte dos países que os produzem.

A mineração de certos metais é altamente concentrada em apenas alguns países. No caso do cobalto, a RDC é responsável por 70% da extração mundial. No caso do níquel, os três maiores produtores (Indonésia, Filipinas e Rússia) respondem por dois terços do mercado. Já no caso do lítio, os três maiores produtores (Austrália, Chile e China) respondem por mais de 90%.

A demanda só crescerá nos próximos anos. De acordo com os planos atuais, nenhuma dessas commodities essenciais terá em operação um número suficiente de minas, até 2030, para construir a infraestrutura necessária a limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, de acordo com a Agência Internacional de Energia.

Até o final desta década, o nascente mercado de lítio precisará triplicar de tamanho, enquanto o suprimento de cobre terá um déficit de 2,4 milhões de toneladas, segundo a agência.

A crescente demanda por essas commodities está começando a transformar tanto a economia quanto a geopolítica do mundo da energia.

Hidróxido de cobalto produzido na mina Tenke-Fungurume - Emmet Livingstone - 17.jun.2023/AFP

As cadeias de suprimento de alguns desses metais estão se emaranhando nas crescentes tensões entre o Ocidente e a China, que domina a capacidade de processamento de lítio, cobalto e terras raras e está considerando restringir as exportações de alguns materiais. Os governos, de Washington e Bruxelas a Tóquio, estão avaliando onde podem obter minerais essenciais de forma confiável sem passar pela órbita de Pequim.

Essa mudança também está transformando alguns países menores e historicamente subdesenvolvidos em superpotências das commodities. E seus governos estão agora empenhados em reescrever as regras da extração mineral.

Muitos estão tentando capturar parte maior do valor de seus minerais, transferindo mais processamento e fabricação de valor agregado para o mercado interno. Alguns também estão tentando controlar a oferta, estatizando os recursos minerais, introduzindo controles de exportação e até mesmo propondo cartéis.

Se no passado alguns desses países ricos em recursos foram vítimas de exploração que pode remontar aos tempos coloniais, agora eles estão se tornando capazes de retomar o controle de seus destinos.

Apenas nos últimos 12 meses, Zimbábue e Namíbia proibiram as exportações de lítio bruto; o Chile reforçou o controle estatal sobre a mineração de lítio; enquanto o México mergulhou seu nascente setor de lítio na incerteza ao iniciar uma nova revisão das concessões de mineração. Enquanto isso, a Indonésia adicionou controles de exportação de bauxita (um ingrediente essencial do alumínio) à sua proibição pré-existente de exportação de minério de níquel bruto.

"Todo governo buscará um acordo com o setor de mineração que seja justo, que seja vantajoso para o país e para o setor", diz Jakob Stausholm, presidente-executivo da mineradora Rio Tinto, que recentemente esteve na mesa de negociações com o Chile e a Mongólia.

Embora ele descarte a ideia de que o avanço do "nacionalismo" esteja por trás disso, reconhece que houve uma mudança. "Provavelmente, será cada vez mais difícil apenas minerar, extrair e exportar; muitas vezes, uma nação quer ter algumas instalações de processamento associadas à mineração".

A sutil mudança de poder na direção dos produtores dos cobiçados metais de bateria é semelhante a outras mudanças pelas quais as commodities passaram no passado, como a ascensão do carvão durante o século 19 ou a do estanho durante o século 20. Mas até onde os produtores irão para tirar proveito desse momento? E por quanto tempo eles conseguirão fazê-lo durar?

A oportunidade da Indonésia

O exemplo de como aproveitar o valor dos materiais é a Indonésia, que produz quase metade do níquel do planeta, um ingrediente fundamental para as baterias de carros elétricos.

Anos de controles de exportação do níquel bruto já conseguiram construir um amplo setor de fundição doméstico, bem como fábricas de baterias e várias fábricas de veículos elétricos.

Depois que o país proibiu as exportações de níquel bruto, em 2014, atraiu mais de US$ 15 bilhões em investimentos estrangeiros no processamento de níquel, principalmente da China. Atualmente, a Indonésia proíbe as exportações de uma gama ampla de metais, de minério de níquel a bauxita, e uma proibição de exportação de concentrado de cobre entrará em vigor no ano que vem.

No entanto, nem todos concordam com essas políticas: a União Europeia as contestou na Organização Mundial do Comércio e saiu vencedora de uma audiência inicial. A Indonésia está apelando contra a decisão.

O presidente da Indonésia, Joko Widodo, e o fundador da Tesla, Elon Musk - Lalily Rachev - 14.mai.2022/Presidência da Indonésia via Reuters

No entanto, as autoridades do governo dizem que os esforços do país para construir a indústria nacional e incentivar a manufatura são inspirados diretamente pelo manual que os países ocidentais usaram um século atrás.

"Isso não é algo que estamos fazendo do nada", diz Bahlil Lahadalia, ministro do Investimento indonésio. "Estamos aprendendo com nossos colegas de países desenvolvidos, que no passado recorreram a essas políticas pouco ortodoxas."

Ele aponta para a forma como o Reino Unido proibiu as exportações de lã crua durante o século 16, para estimular seu setor têxtil doméstico. Ou para os Estados Unidos, que recorreram a altos impostos de importação durante os séculos 19 e 20 para incentivar o crescimento da produção doméstica.

Lahadalia quer dar um passo adiante, criando um cartel ao estilo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) para manter altos os preços do níquel e de outros materiais de bateria. "A Indonésia está estudando a possibilidade de formar uma estrutura de governança semelhante [à Opep] com relação aos minerais que temos", ele diz.

Independentemente de isso acontecer ou não, a ascensão do níquel certamente deu à Indonésia um perfil mais elevado. Quando o presidente Joko Widodo, ou "Jokowi", como é conhecido, visitou os Estados Unidos no ano passado, ele se encontrou com o presidente Joe Biden, em Washington, e com o presidente-executivo da Tesla, Elon Musk, em uma visita inusitada a Boca Chica, Texas.

Mais tarde, Jokowi disse que incentivou Musk a construir toda a cadeia de suprimentos da Tesla em seu país, "de cima para baixo".

Janela de oportunidade

No entanto, nem todos os países seguirão a mesma trajetória da Indonésia.

Um novo relatório da Agência Internacional de Energia Renovável (Irena) conclui que os produtores de metais poderão exercer influência em curto prazo, enquanto a produção estiver concentrada e a demanda estiver em alta, mas é improvável que eles venham a ter o tipo de poder geopolítico duradouro desfrutado pelos produtores de petróleo e gás.

Um desafio é que os metais de bateria, como o lítio, estão bem distribuídos por todo o planeta - pelo menos em termos de reservas geológicas, se não em produção real de minas. Os altos preços atuais do lítio tornam eficiente o desenvolvimento de depósitos cuja exploração antes era cara demais, e alimentam a expansão mais ampla da mineração de lítio em rochas duras, em lugares como a China e a Austrália.

Um exemplo de como a produção de minerais pode mudar é a mineração de lítio na América do Sul. Atualmente, o Chile é o principal produtor da região, mas a vizinha Argentina, que tem políticas de mineração mais favoráveis aos negócios, pode acabar por ultrapassá-lo.

As 23 províncias da Argentina controlam seus próprios recursos naturais e vêm cortejando entusiasticamente o setor de mineração. Com cerca de US$ 9,6 bilhões de investimentos em lítio anunciados nos últimos três anos e 38 projetos em andamento, as autoridades dizem que a produção argentina deve sextuplicar nos próximos cinco anos.

"O investimento em lítio nunca parou e acho que isso tem a ver com o fato de estarmos abertos ao investimento privado e com a incerteza sobre as políticas que estão sendo implementadas em outros países", diz Fernanda Ávila, ministra da Mineração da Argentina.

A posição da Argentina como uma anomalia entre os países sul-americanos dotados de reservas de lítio ajudou a atrair investimentos, mesmo quando estes escassearam em outros setores da economia e diante de uma inflação de três dígitos.

Embora alguns políticos do "triângulo do lítio" da América do Sul, Chile, Argentina e Bolívia, tenham cogitado a ideia de um cartel de lítio no estilo da Opep, Ávila não está muito entusiasmada com a ideia. Ainda que "tenhamos um relacionamento muito bom com nossos países vizinhos", diz ela, "esse não é um tópico que está na agenda".

O que é ainda outra razão pela qual a produção de metais para baterias é diferente da produção de petróleo: é muito difícil formar um cartel bem-sucedido.

Mina de lítio no Chile - Marcos Zegers/The New York Times

Durante o século 20, várias commodities importantes foram controladas por cartéis. O estanho foi administrado pelo International Tin Council [Conselho Internacional do Estanho] entre 1950 e a década de 1980 - e a Indonésia, a Bolívia e o então Congo Belga eram todos membros produtores. Da mesma forma, os produtores de café se uniram em um cartel durante as décadas de 1960 e 1970; e os produtores de borracha natural mantiveram um cartel até a década de 1990.

John Baffes, chefe da Unidade de Commodities do Banco Mundial, que estudou essas organizações, diz que os cartéis bem-sucedidos têm três características: um número pequeno de produtores, que compartilham um objetivo bem definido, em um período de tempo curto.

Ele acredita que será difícil para os produtores de metais para baterias formarem cartéis. "É possível que alguns países se unam para criar um ambiente que possa ser benéfico para eles, por exemplo para manter os preços altos", diz Baffes. "Mas isso será a semente do fracasso, porque mais entidades chegarão ao mercado, de fora do grupo".

A velocidade com que as tecnologias de baterias estão evoluindo e seus ingredientes estão mudando também pode prejudicar os esforços de cartelização.

Ao contrário do petróleo, que é muito difícil de substituir como fonte de combustível, os metais das baterias têm um risco muito maior de substituição. Os laboratórios que desenvolvem novos produtos químicos para baterias estão constantemente desenvolvendo suas fórmulas para usar menos metais que sejam caros ou difíceis de adquirir.

Isso já está começando a acontecer com o cobalto, cujo uso as montadoras de automóveis estão tentando reduzir em suas baterias devido ao alto custo, bem como às preocupações com os direitos humanos na República Democrática do Congo.

Em uma história que serve de alerta sobre a rapidez com que as perspectivas de demanda podem mudar, o uso de baterias sem cobalto na China aumentou de 18% do mercado de veículos elétricos em 2020 para 60% este ano, de acordo com a Rho Motion, uma consultoria de veículos elétricos. Baterias ricas em manganês também estão no horizonte, o que poderia reduzir ainda mais o uso do cobalto.

"Uma das consequências do uso maior de baterias sem cobalto é que a escassez anteriormente prevista para o cobalto por volta de 2024 e 2025 pode não se concretizar", diz Andries Gerbens, operador da Darton Commodities. "Isso pode indicar que os preços do cobalto permanecerão mais baixos".

A recente queda nos preços do cobalto, do níquel e do lítio pode atenuar os esforços dos países produtores para extrair mais renda e desenvolver a fabricação nacional. Depois que o cobalto e o lítio tiveram uma grande alta de preços em 2021 e 2022, impulsionada principalmente pela demanda de baterias para veículos elétricos, o mercado este ano tem estado muito mais calmo.

Uma desaceleração na produção de veículos elétricos na China, combinada com um aumento na produção, fez com que os preços do hidróxido de cobalto e do carbonato de lítio caíssem em 30% e 40%, respectivamente, durante os primeiros seis meses do ano, de acordo com a Benchmark Mineral Intelligence.

Mineradores veteranos dizem que esse ciclo já aconteceu muitas vezes. O nacionalismo de recursos tende a aumentar quando os preços das commodities estão altos ou quando eleições estão se aproximando, diz Mick Davis, fundador da Vision Blue Resources e ex-diretor executivo da Xstrata.

Durante esses períodos, "[os políticos] inevitavelmente tentam capturar parte maior da renda do que inicialmente previram e concordaram", diz Davis. "E isso sempre acaba em lágrimas. O que significa que o desenvolvimento de seus recursos minerais leva cada vez mais tempo para acontecer".

"Carpe diem"

No entanto, enquanto o ciclo ainda permite que os países produtores exercitem sua força, eles têm a intenção de aproveitar o momento seja lá como puderem.

No início deste ano, o Chile, o segundo maior produtor de lítio do planeta, anunciou um plano para estatizar parcialmente o setor: o país dará maior controle de duas minas gigantes de lítio no deserto de Atacama a uma empresa de mineração estatal, quando os contratos atuais terminarem, em 2030 e 2043, e esses projetos e todos os futuros contratos do setor se tornarão parcerias entre o setor público e o privado.

O presidente chileno, Gabriel Boric, disse que o plano para ampliar o controle estatal sobre o lítio é a melhor chance que o Chile tem de se tornar uma "economia desenvolvida" e distribuir a riqueza de uma forma mais justa. "Chega de 'mineração para poucos'. Temos que encontrar uma maneira de compartilhar os benefícios de nosso país entre todos os chilenos", ele disse.

E muitos produtores estão conseguindo subir na cadeia de valor, em uma tentativa de criar crescimento econômico sustentável. Na RDC, a segunda fundição de cobre do país está sendo construída perto da mina de cobre de Kamoa-Kakula.

O Chile, por sua vez, está oferecendo preços preferenciais para o carbonato de lítio às empresas que estabelecerem projetos de lítio com valor agregado no país. A primeira a aceitar foi a chinesa BYD, uma das maiores fabricantes de veículos elétricos do mundo, que anunciou em abril que construiria uma fábrica de cátodo de lítio no norte do Chile, com 500 empregos previstos na fase de investimento.

A Argentina deve inaugurar uma pequena fábrica de baterias de íons de lítio —a primeira da América Latina— em setembro, com uma fábrica maior prevista para o ano que vem. De propriedade da empresa estatal de pesquisa de energia Y-TEC, a fábrica, na província de Buenos Aires, usará lítio extraído na Argentina pela empresa americana Livent, para produzir o equivalente a 400 baterias para veículos elétricos por ano.

As tentativas da Indonésia de construir um setor de veículos elétricos estão dando frutos em escala ainda maior. No início deste ano, a Ford anunciou investimento em uma instalação de processamento de níquel no valor de alguns bilhões de dólares. Neste verão, a Hyundai iniciou a construção de uma fábrica de baterias, sua segunda unidade de fabricação no país.

A transição energética começa a reformular os sistemas de poder e riqueza que dominaram o século 20, e enquanto isso os novos produtores de metais para baterias estão apenas começando. Muitos veem essa mudança na dinâmica do poder como bem-vinda.

"É absolutamente essencial que reescrevamos o legado do setor de mineração, para que os países ricos em minerais possam capturar parte maior do valor econômico", diz Elizabeth Press, diretora de planejamento da Irena e autora do relatório sobre minerais essenciais. "Estamos vendo uma maior conscientização, por ambos os lados, de que as coisas não podem continuar como estavam."

Tradução de Paulo Migliacci

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