Funai aponta possível presença de indígenas isolados em área com exploração de gás na Amazônia

MPF diz existir risco de morte e pede licença no Ibama; Eneva afirma que bases oficiais não mostram comunidades na área do Campo Azulão, no Amazonas

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Manaus

A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) apontou uma "grande possibilidade" de presença de indígenas isolados em área com exploração de gás na região de Itapiranga (AM), a 300 km de Manaus.

A afirmação de área técnica do órgão foi feita em ofício enviado ao MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas, que disse existir "grave e iminente risco à vida de povos isolados" em razão do empreendimento.

Diante do risco, deve haver "urgente intervenção judicial", conforme a Procuradoria da República. Os documentos de Funai e MPF foram elaborados no último dia 1º.

A exploração de gás no chamado Campo Azulão, em Itapiranga e Silves (AM), é feita pela empresa Eneva. O insumo é levado para uma termelétrica em Roraima que é responsável por 50% da geração de energia elétrica no estado, segundo a companhia.

Em nota, a Eneva afirma que não foram identificadas comunidades indígenas ou quilombolas na área, conforme bases de Funai e Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). "Não há o que se falar de ausência de estudos indígenas ou quilombolas, pois não há previsão legal para tal", afirma.

Vista aérea da usina
Usina termelétrica Jaguatirica 2, em Boa Vista, em Roraima, que usa gás extraído no Campo Azulão, no Amazonas, pela empresa Eneva - Lalo de Almeida - 28.jul.2022/Folhapress

A assessoria da empresa encaminhou análise cartográfica da Funai, feita em 2023, que mostra a Terra Indígena Paraná do Arauató, dos muras, no rio Amazonas, como a mais próxima do Campo Azulão, a 27,85 km de distância. O território é demarcado. Outra área indígena, sem demarcação, está a 26,51 km do empreendimento, conforme o documento.

"Sempre usamos as bases oficiais. Se aparece uma informação nova, mantemos diálogo para menor impacto possível", diz Felipe Roza, gerente de meio ambiente da Eneva.

Para o empreendimento, a Eneva –companhia que tem BTG Pactual, Cambuhy, Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária– buscou o órgão ambiental do Amazonas para a obtenção das licenças necessárias. Assim, o licenciamento foi conduzido pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), não pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

No ano passado, o Ibama usou uma declaração da própria empresa para se retirar da condução do licenciamento, como a Folha mostrou em reportagem de setembro de 2023. No documento autodeclaratório, a Eneva disse que os projetos não impactam terras indígenas.

Tanto a Funai quanto o MPI (Ministério dos Povos Indígenas), porém, afirmaram que o licenciamento ignorou a presença de indígenas na região e o impacto do empreendimento às comunidades tradicionais. Os órgãos pediram a suspensão das licenças.

Já o MPF solicitou à Justiça Federal que determine a condução desses processos pelo Ibama, não pelo Ipaam.

Os indígenas precisam ser consultados, como prevê a convenção número 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), e um estudo de componente indígena –necessário quando obras impactam comunidades tradicionais– precisa ser elaborado, conforme MPF e Funai.

Agora, surgem indícios da presença de indígenas em isolamento voluntário na região. A detecção de uma família, com possibilidade de que seja de um povo isolado, foi feita pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) de Itacoatiara (AM).

Em relatório encaminhado à Funai, a CPT descreveu um levantamento feito em agosto de 2023 sobre povos indígenas na região de Itapiranga. Além da presença em comunidades, uma equipe decidiu ampliar a incursão na região.

No rio Uatumã, 4 km floresta adentro, integrantes da CPT dizem ter se deparado com cinco indígenas, parte deles nus, ou com cipó amarrado na cabeça e na cintura. Não portavam arco e flecha, falavam na própria língua, são morenos claros com cabelos pretos, conforme o relatório encaminhado à Funai.

Entre as etnias na região, estão muras, mundurukus e gaviões.

"A Funai já havia colhido outros relatos sobre a presença de indígenas isolados na comunidade ribeirinha Jabuti, na margem direita do rio Jatapu, no interflúvio com o rio Uatumã, rio onde ocorreu o avistamento por parte dos integrantes da CPT", afirmou a coordenação de indígenas isolados e de recente contato da Funai, em resposta a questionamentos do MPF.

"Ainda que não haja, até o momento, um registro oficial, não se pode descartar a possibilidade de se tratar de grupo até então desconhecido ou fragmento de grupo em isolamento que tenha migrado da região do Jatapu ou de outro local para a área em período mais recente", disse a coordenação da Funai, para quem é "imprescindível" que ocorram atividades para confirmação do grupo.

Segundo o MPF, essa busca deve provocar adequações no processo de licenciamento. Qualquer extração mineral na região só deve ocorrer se houver garantia de que não existirão danos a povos isolados, conforme a Funai.

A CPT disse à Funai que existem sete aldeias em Silves, com 235 famílias; duas em Itapiranga, com 14 famílias; e uma família de indígenas isolados "avistada de forma surpreendente na floresta próximo a um dos blocos de gás em processo de exploração pela Eneva", como consta em documento do MPF.

O procurador da República Fernando Merloto Soave, na petição enviada à Justiça, disse que o local explorado pela Eneva se sobrepõe a uma área de ribeirinhos e extrativistas, que querem criar uma reserva de desenvolvimento sustentável, a uma área de pesca com acordo homologado junto ao Ibama e também à Terra Indígena Gavião Real, em processo de demarcação junto à Funai.

O MPF pediu a suspensão imediata de todos os processos de licenciamento ambiental em curso no órgão do Amazonas, a suspensão da exploração de poços de gás e petróleo onde há sobreposição com comunidades tradicionais e a transferência do licenciamento ao Ibama.

A manifestação da Procuradoria se deu no curso de uma ação movida pela Aspac (Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural) e por representantes de indígenas muras. Segundo a ação, o licenciamento foi feito sem estudos de impacto ambiental e sem consulta a comunidades indígenas e quilombolas.

Em maio de 2023, no curso da ação, a Justiça Federal no Amazonas suspendeu liminarmente as licenças concedidas pelo Ipaam no Campo Azulão. A Eneva ingressou com recurso contra a decisão, que foi acatado pelo TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, garantindo a validade das licenças.

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