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Descrição de chapéu mudança climática

Fumaça que atormenta Porto Velho tem origem em áreas com terra arrasada e destruição contínua

Ar na capital de Rondônia está em níveis perigosos para se respirar, e aviões zanzam no céu sem possibilidade de pouso seguro

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Porto Velho

De cima, num registro de uma imagem de satélite, o conjunto de estradas de chão que rasgam a floresta e abrem caminho para o pasto se assemelha a uma espinha de peixe. Em solo, o cenário é de terra arrasada, de destruição ampla e contínua, sentida por olhos, nariz e pele.

Os ramais —como são chamadas essas estradas— garantem o acesso a imóveis rurais e a invasões tomadas pelo gado, até a borda da Floresta Nacional de Jacundá, na região de Candeias do Jamari, em Rondônia. A espinha de peixe está a 65 km da capital Porto Velho.

Ao longo dos ramais, estão posseiros, invasores, grileiros e produtores rurais que se dizem proprietários das áreas.

Árvores mortas em meio à fumaça de queimadas às margens da BR-364 no distrito de Mutum Paraná, em Porto Velho, Rondônia, nesta segunda (2) - Folhapress

O fogo queima pasto e vegetação secos, as chamas ainda estão acesas em diferentes pontos nas margens dos ramais, fuligem se espalha pelo solo e o horizonte de fumaça é cinza —algo opaco, a se perder de vista, que impede os olhos de alcançarem formatos e decifrarem o que existe a poucos metros. O cheiro de algo defumado impregna o corpo. O ar é irrespirável.

É esse um dos principais pontos de origem das ondas de fumaça que invadem Porto Velho há semanas e que transformam a cidade num dos piores lugares para se respirar no mundo. A reportagem da Folha esteve na região.

A qualidade do ar é considerada perigosa por dias seguidos, a cidade está tomada por fumaça há semanas e há em Porto Velho o mesmo horizonte opaco e o mesmo cheiro característicos da região de ramais próximos à Floresta de Jacundá.

A vida das pessoas na cidade virou um martírio. Passou a ser frequente o recuo de aviões no ar em razão da impossibilidade de se pousar no aeroporto, diante da invisibilidade provocada pela fumaça. Voos são cancelados por dias sucessivos, e moradores de Rondônia precisam esperar por até seis dias para voltarem a suas casas, até conseguirem vagas em aviões que consigam pousar na cidade.

Problemas de saúde se avolumam, especialmente respiratórios. A rotina de muitos foi alterada. O 7 de Setembro, por exemplo, não vai existir. O desfile foi cancelado pelo governo do estado em razão dos riscos de exposição das pessoas à fumaça e da completa ausência de perspectiva de mudança do cenário.

Moradores pescam sob a ponte do rio Madeira em Porto Velho, em meio à fumaça das queimadas que há dias cobre a capital de Rondônia; rio Madeira atingiu o menor nível desde que começou a ser monitorado, em 1967 - Folhapress

O estado é um dos mais desmatados e degradados no bioma amazônia. O governador Marcos Rocha (União Brasil) é um dos mais bolsonaristas da região e já se recusou, por exemplo, a endossar uma carta com compromisso de desenvolvimento sustentável na amazônia.

Ele estimula o avanço de um projeto de desenvolvimento da Amacro (região que engloba Rondônia, Acre e sul do Amazonas), que é um dos principais arcos de devastação da amazônia. Boa parte de unidades de conservação estaduais está invadida por posseiros e grileiros, com conivência do governo local.

Em Rondônia, Bolsonaro teve 70,66% dos votos no segundo turno da disputa presidencial em 2022.

Entre moradores de Porto Velho e região, há um clima de indiferença e aceitação, como se a crise climática vivenciada no lugar não tivesse relação com o processo de ocupação irregular e predatória da floresta. É comum entre moradores e autoridades locais a repetição do discurso de que a fumaça provém substancialmente do sul do Amazonas e do Pará.

Não se viram queimadas e ondas de fumaça ao longo dos anos em Rondônia como as vivenciadas na estação de seca em 2024, segundo agentes do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

O fogo se alastra em mais um ano de seca extrema, com níveis de rios da região —especialmente o rio Madeira, que passa por Porto Velho— atingindo mínimas históricas. A crise é causada pela soma de diferentes fatores, como o El Niño, que é o aquecimento acima da média no oceano Pacífico, as mudanças climáticas e a degradação da amazônia em diferentes pontos.

As imagens de satélite que o Ibama em Rondônia utiliza para monitorar fogo e fumaça mostram que as queimadas começaram a ganhar força no fim de julho, em unidades estaduais de conservação, onde são comuns as invasões por posseiros.

No começo de agosto, essas imagens apontavam fumaça proveniente da Bolívia e do sul do Amazonas. Mais alguns dias, e Mato Grosso e Pará também contribuíram com ondas de fumaça.

A situação seguiu piorando ao longo de agosto e ganhou contornos críticos a partir do dia 22, com queimadas sem controle no próprio estado de Rondônia. A tomada por fumaça, em níveis considerados perigosos à saúde humana, é uma realidade em praticamente todo o estado.

Na região que responde por uma parte substancial da fumaça que invade Porto Velho, o fogo segue consumindo a vegetação. É uma forma barata de limpar um pasto para gado, abrir uma área, garantir uma ocupação.

A espinha de peixe formada por um conjunto de ramais amplia ocupações e imóveis até bem próximo da Floresta Nacional de Jacundá, uma unidade de conservação federal. Esses ramais têm como referência a Vila Nova de Samuel, o entroncamento urbano mais próximo.

Na região, na qual a vegetação é comida pelo fogo por dias, o sol não incomoda os olhos e quase não há barulho. Os incêndios e as ondas de fumaça afastaram o movimento de carros e motos.

Segundo o Ibama e moradores, o ponto de partida para o avanço de posseiros foi a existência de um assentamento rural, que acabou desvirtuado.

"Todo mundo aqui tem contrato de compra e venda. Eu, por exemplo, comprei a posse e as benfeitorias de um assentado", afirma Moisés Dias da Cruz, 23, que vive na região com a mulher e duas filhas, uma de 4 anos e outra de 4 meses. As meninas passam os dias num quarto com ar-condicionado, em razão das ondas de fumaça. Tudo pegou fogo ao redor da casa de Cruz.

"O fogo e a fumaça em 2024 estão piores, porque está seco demais", diz ele, que vive na região da linha LP45 —um dos ramais que cortam o que já foi floresta— desde 2020. "A maioria é incêndio criminoso. Aparece o fogo e sai todo mundo tentando apagar. Já são 20 dias seguidos de fumaça."

Em outros ramais, há fazendas de maior porte. Na LP45, predomina a "posse mansa", termo usado pelos moradores para designar a compra de uma posse e de benfeitorias.

No caminho do ramal, há colunas gigantes de fumaça, provenientes de queimadas recém-iniciadas. O predomínio é de uma fumaça contínua, duradoura, densa, que esconde os próprios focos de incêndio detectados por satélites. O vento carrega a brasa e alastra o fogo por áreas de floresta.

O superintendente do Ibama em Rondônia, César Guimarães, afirma que os 205 brigadistas do Prevfogo (Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais) estão concentrados em unidades de conservação federais e em terras indígenas.

"O fogo é criminoso, não existe fogo natural", diz Guimarães. "Nada é mais barato do que um palito de fósforo."

Há queimadas em todo o estado, com uma forte densidade de fumaça, e uma crise hídrica, em que 18 municípios declararam emergência, segundo Jaime Fernandes, coordenador operacional da Defesa Civil de Rondônia. "Os focos de incêndio são anormais, e deve haver reforço de bombeiros de outros estados."

Desde 1º de agosto, Rondônia registrou mais de 5.000 focos de calor, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Os estados na Amazônia que lideram em queimadas são Pará (quase 17 mil), Amazonas (11,4 mil) e Mato Grosso (8.700).

As reportagens da série Mudanças Climáticas na Amazônia contam com apoio da Rainforest Foundation Norway

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