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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Flores permanentes

Não me assombraria se um quarto dos brasileiros acreditasse que as flores crescem com as raízes mamando na Lei Rouanet

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Não escrevo uma crônica, acho, desde 2018, quando o grande meteoro se chocou contra a Terra, as cinzas escureceram os céus e só as flores de plástico passaram a vicejar no semiárido pan-americano.

Forcei um pouco a presença das flores de plástico no parágrafo anterior porque queria contar: outro dia, subindo a pé a Teodoro, passei por uma loja deste hediondo ornamento e o luminoso anunciava "Flores permanentes". O mundo se acabando, mas as flores seguirão de pé, milênios afora. Confesso que eu preferia o contrário, um planeta longevo com gérberas murchando, mas o que sei eu, este velho mamífero em extinção? (Desta vez o meteoro matou os mamíferos e trouxe à vida os dinossauros. Bolsonaro rex. Diplodocus damaris. Pteromarius frias).

"Flores permanentes". Que belo eufemismo. E vai argumentar? Vai dizer que não é verdade? Que se é permanente não é flor? Que a graça da flor tá justamente na impermanência, que nos lembra da impermanência da vida ao mesmo tempo em que nos brinda com o que a vida tem de melhor: os cheiros, as cores, gineceu e androceu pra geral, até o último suspiro.

Mal termino o parágrafo e já antevejo o Twitter: "Impermanência das flores! Impermanência da vida! Deixa de viadagem! Vai pra Cuba, esquerdo-Prata! Vai falar de florzinha na Venezuela! Aqui não! Pros meus filhos, não! Por isso que meus filhos vão estudar em casa, vão estudar comigo e com a minha senhoura, pra saber que a Terra é plana, que a vacina mata e arma salva, que o certo é louco tomar eletrochoque e o macho branco sempre no poder! Isso aí de flor é kit gay! É ideologia de gênero!". Não me assombraria se um quarto dos brasileiros acreditasse que as flores crescem com as raízes mamando na Lei Rouanet.

Eu disse que tava difícil escrever crônicas: é complicado assoviar durante o incêndio. Mas e se o incêndio durar para sempre, nunca mais vai ter música? O Primo Levi conta de uns gregos lá em Auschwitz que se juntavam e cantavam músicas alegres e engraçadas. Não, ele não tira daí a lição de que mesmo nos momentos mais tenebrosos é possível e necessário cantar.

O Primo Levi diz que o que o levava adiante, dia a dia, sem paralisar diante do horror, não era a esperança ou qualquer ideia bonita, eram os pepinos diários. Num campo de concentração, diz ele em "é isto um homem?", você não tem tempo pra refletir sobre a natureza do mal, porque você precisa urgentemente de uma bota, porque amanhã vai trabalhar na neve e pra conseguir uma bota vai ter que arrumar cigarros para trocar por pão para trocar pela bota. Foi essa atroz gincana diária, diz o autor italiano, que o salvou do desespero.

O lado bom de não estar num campo de concentração é não estar num campo de concentração. O lado ruim é que somos capazes de contemplar o horror, ao mesmo tempo em que precisamos arrumar a bota. Temos que ajudar conhecidos e desconhecidos condenados injustamente. Tirar dinheiro da orelha pra montar uma peça de teatro ou fazer um filme. E a Amazônia? E os Yanomami? E as chacinas da PM? E a população sendo armada e animada diariamente pelo presidente a usar as armas (contra nós) em caso de derrota eleitoral? Será que em outubro teremos a nossa "Noite dos Cristais"? Será que já a tivemos e como os judeus alemães, na década de 30, não entendemos o recado?

Faz uns quatro anos que escrevo sobre não conseguir escrever uma crônica. Não adianta, não sei assoviar no incêndio. Eu sento diante do computador pensando em gérberas, nos Beatles ou no Corinthians, mas logo lembro que preciso de botas porque amanhã, quem sabe, iremos trabalhar na neve?

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