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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Guarda-olhos

'Desde quando desejo virou defeito?', perguntou Marcão

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Confesso que anteontem, ao começar a chuva, senti uma felicidade mesquinha pelo atraso do Marcão. Ele nunca, jamais é pontual: bem feito, pensei. Quando chegou ao bar, fingi cumplicidade, lamentei a virada do tempo, citei o aquecimento global e a má administração das bocas de lobo da atual prefeitura, mas, para minha surpresa, ele tava eufórico com o pé d’água.

"Mano! Cê não sabe o que eu descobri! Com o guarda-chuva, dá pra ver bunda de novo!". Diante da minha cara de interrogação, explicou: seu guarda-chuva era pequeno, o que o forçava a levá-lo quase colado à cabeça, cobrindo-a, e, portanto, ocultando seus olhos, feito a aba de um chapéu. "Foi pra mais de sete quarteirões de bunda! Focava numa, pulava pra outra, depois pra outra e ninguém sabia de nada! Cheguei a mudar de calçada ali na altura da Smart Fit! Acho que eu não via bunda com tanta liberdade desde 1994!". Marcão encheu um copo e o ergueu: "são Pedro, meu consagrado! Saúde!".

Olhei pras meninas da mesa ao lado, com medo de que elas tivessem ouvido. "Complicado, né, Marcos, você sair por aí olhando bunda de mulher". Marcão: "complicado por quê?". "Porque é machista". "Não é machista". "É". "Mano, eu não saí pela rua fazendo fiu-fiu. Eu não falei "ô, lá em casa!". Nenhuma, nenhumíssima dessas mulheres soube que eu olhei pra bunda delas. Taí, justamente, a beleza do guarda-chuva". Marcão ergueu mais um brinde a são Pedro, dessa vez incluindo também todos os trabalhadores fabris da China, Taiwan e arredores. "Te digo mais: o guarda-chuva é uma arma antimachista!"

Não arredei o pé. "Marcão, olhar a bunda da mulher é objetificar o corpo feminino". Marcão: "não! É DESEJAR o corpo feminino! Desde quando desejo virou defeito? A gente foi moldado pela evolução com o único objetivo de procriar. O desejo é a arma do gene egoísta pra própria perpetuação. Tá até na Bíblia, mano: ‘crescei e multiplicai-vos’.". "Você tá querendo dizer que olhar bunda de mulher é uma atitude cristã?". "Se a mulher souber, é uma atitude cafajeste, se não souber, é cristã, sim! Cristã, darwinista e saudável! Eu ouvi num podcast que o desejo masculino por bundas vem da associação inconsciente de uma bunda grande à saúde. O homem das cavernas olhava o buzanfã avantajado e pensava, essa aí tem reserva de energia, vai levar a gravidez a contento mesmo que eu fique uma semana sem matar um bisão. Olha só: desejar a bunda de uma mulher não é só respeitar a palavra divina e estar conforme a teoria da seleção natural, é um ato contra a gordofobia!"

Ficamos um tempo em silêncio. Marcão levitava a um palmo do chão. "Acho que eu vou comprar um sombreiro. Será que um sombreiro dá o mesmo efeito do guarda-chuva?". "Marcão, você é doente". "Não! Você é doente! Nossa época é doente! Hipócrita. Moralista. Puritana. Sou completamente solidário à luta feminista, o machismo é uma praga, fiu-fiu é assédio, #nãoénão, #meucorpominhasregras, mas ninguém vai me convencer de que tem algo errado com o desejo, que é feio sentir tesão". Então ergueu mais um brinde: "ao guarda-chuva, aos companheiros Javé e Darwin, que estão do meu lado. Aos trabalhadores fabris da China, Taiwan e arredores, que me propiciaram sete quarteirões de felicidade. A todas as mulheres do mundo. A Domingos de Oliveira. A Walt Whitman. A Vinicius de Moraes e ao verme que primeiro roer as frias carnes do meu cadáver, porque a vida é curta, Antonio, a vida é dura, o mundo é terrível, mas as bundas, não". Marcão então me ofereceu o guarda-chuva. "Vai dar uma volta no quarteirão, depois a gente conversa".

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