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Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

O médico e o monstro na pandemia

No país, os profissionais de saúde foram e ainda são tratados como bucha de canhão

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A Covid-19 despertou respeito e medo dos médicos.

No país onde o plano de ação na pandemia foi mandar as pessoas circularem, onde se celebra 33 milhões de casos recuperados, profissionais de saúde foram e ainda são tratados como buchas de canhão. Quando combatentes são tratados por militares ou pelo governo como descartáveis e são colocados em uma situação que não têm como vencer. No Brasil, a pandemia foi gerida na base do número de leitos de UTI disponíveis, ao custo de quem viabilizou esses leitos.

Médicos pagam com a vida por causa do novo coronavírus desde muito cedo. Como o oftalmologista chinês Li Wenliang, perseguido por avisar sobre a Covid quando ainda era um surto de pneumonia sem causa conhecida em Wuhan. Ele perdeu sua vida para a própria doença, como muitos outros.

À frente de uma equipe de 45 médicos, Mario Gonzalez lida com estresse e sobrecarga de pacientes com Covid-19 no Instituto Emilio Ribas, em São Paulo (SP) - Eduardo Knapp - 1º.abr.21/Folhapress

Mesmo assim, muito do que evitamos, como as mais de 40 milhões de mortes que poderiam acontecer no mundo, se deve à atuação médica e à construção e compartilhamento do conhecimento sobre a Covid. Antes de ela completar um ano, já sabíamos que era causada pelo Sars-CoV-2, revelamos o seu genoma, desenvolvemos testes e vacinas. Graças, em muito, à medicina.

Médicos não necessariamente são cientistas. Esse é um mantra que infelizmente precisa ser repetido. Mas médicos podem ser excelentes cientistas quando se dedicam à pesquisa. Foi graças a seus estudos que entendemos como a Covid se desenvolve, quem são os afetados, quais são os melhores protocolos de internação e intubação, quais medicamentos funcionam, qual a eficácia e a segurança das vacinas e muito do que aliviou nossa situação na pandemia.

Por outro lado, essa fase também mostrou profissionais que passei a temer. São os viabilizadores e validadores de muitos pesadelos recentes. Aqueles que receitam terapias sem função, que validaram e ainda prescrevem tratamento precoce ou a ozonioterapia. Aqueles que conduziram pesquisas sem ética ou sem a competência para afirmar que essas terapias funcionam; ou mesmo estudos como o da proxalutamida, onde, segundo o Conselho Nacional de Saúde, "não se descarta a hipótese de que o grupo controle tenha recebido inadvertidamente fármaco diferente de placebo com potencial tóxico" —ou seja, onde quem não foi tratado com o medicamento experimental pode ter morrido intoxicado.

Também tem aqueles que renegam o Juramento de Hipócrates ao atacar vacinas seguras e eficazes, traindo a confiança de nós brasileiros, que sempre confiamos em seu conhecimento para nos vacinarmos como poucos países no mundo.

Por décadas, nosso sistema de saúde —e a produção de conhecimento— funcionou dentro da hierarquia de ministérios e agências como a Anvisa, gerindo normas, leis e diretrizes federais que ditavam como a medicina é exercida na outra ponta, dos pacientes. Ao longo da pandemia, muito disso foi desmontado.

Tivemos quatro ministros da Saúde e um período sem ministro no auge dos casos em 2020. O Programa Nacional de Imunizações passou meses sem direção. E como mostrou a CPI da pandemia, cargos técnicos do Ministério da Saúde foram ocupados por profissionais sem competência em saúde, entre outros feitos.

Nessa gestão de saúde federal sem cabeça, a responsabilidade passa para agentes estaduais, municipais e sociedades e associações darem algum norte para a área. O que é um terreno fértil para minar o conhecimento produzido por médicos e deixar os monstros da área soltos.

Está mais do que na hora de os profissionais de saúde avaliarem (e criticarem) a postura de seus colegas que ainda ferem a ética da profissão. Quem paga o preço por essa demora não são só os pacientes, são vocês mesmos, que continuam servindo de bucha de canhão.

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