Siga a folha

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Para os fundamentalistas religiosos, tudo é justo em nome de Deus

'Deus acima de todos' é o maior excludente de ilicitude que se pode arrumar, a garantia de que não haverá justiça

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Entre as diversas ameaças afastadas pelo voto do último domingo estava o risco de ver a blasfêmia instituída como instrumento de controle jurídico e social. Dito assim pode parecer exagero, mas não é.

Dois episódios, entre tantos outros durante o governo Bolsonaro, dão a medida do que se pode esperar de um projeto de poder religioso em relação às liberdades individuais.

Damares Alves, ao lado de Michelle Bolsonaro, durante convenção do Republicanos que lançou seu nome ao Senado - Pedro Ladeira - 5.ago.22/Folhapress

O primeiro é o atentado a bomba à sede do Porta dos Fundos em 2019, em reação ao especial de Natal, sob a indiferença do então ministro da Justiça Sergio Moro. O segundo é a avalanche sincronizada de ações judiciais ("lawfare") movidas, em 2020, por pastores da Igreja Universal contra o escritor João Paulo Cuenca, tentando intimidá-lo por um comentário no Twitter, na verdade uma citação literária (e obviamente metafórica), que condicionava a liberdade no país ao enforcamento dos estelionatários do Estado de Direito nas tripas do último fariseu.

Já citei neste mesmo espaço o texto "A Estrutura Psicológica do Fascismo", de 1933, no qual o francês Georges Bataille define três "formas imperativas" de autoridade autocrática: a religiosa, a real (do rei) e a militar. Embora estejam interligadas, é a religiosa que o interessa em especial, porque é a que estaria na origem de tudo.

Na obra de Bataille, de inspiração surrealista e antropológica, Deus e o erotismo são indissociáveis, como o sexo e a morte no sacrifício. Na perspectiva radical do autor, não perceber a complexidade erótica dos rituais religiosos é perder de vista o principal na organização das sociedades humanas.

Sua obra, transgressiva, original e corajosa, é composta de ensaios e narrativas que rompem os limites da literatura convencional, bem-posta, circunscrita ao aceitável, para escavar além do bem e do mal o mundo dos desejos. É uma obra que, apesar de tudo, depende essencialmente da razão. E é a última coisa que pastores zelosos de sua influência sobre fiéis deixariam publicar se tivessem o poder de legislar sobre a totalidade da humanidade.

A autocracia religiosa vem tomando a dianteira com a disseminação dos fundamentalismos. A religião, em princípio moralmente justificável, deixa de ser um agregador civilizatório ao passar a cobiçar o poder, o que ela acabará fazendo onde não houver leis que a impeçam. É sua vocação impor seus valores a todos os cidadãos, convertê-los em fiéis.

É natural, portanto, que ela recorra a um sistema de inversões, um jogo de espelhos que lhe permita acusar quem defende os direitos individuais de tentar impor seu modo de vida exótico, quando é justamente o contrário que está em jogo. Pastores dizem que o Estado laico quer fechar as igrejas, quando na verdade é projeto dessas igrejas abolir o Estado laico, para poder intervir até em escolhas de foro íntimo.

As perspectivas atuais atestam a fragilidade do Estado na defesa não só dos direitos e liberdades individuais como da pluralidade de credos, contrapeso a um projeto de poder religioso centralizado e autocrático. A blasfêmia é o desdobramento natural desse sistema de inversão de direitos em valores. Na ordem idealizada pelos fundamentalistas religiosos, a blasfêmia ocupa o lugar do crime, convertido em justiça.

Isso fica claro na lógica dos jovens terroristas que invadiram a sede do jornal satírico francês Charlie Hebdo, em 2015, matando 12 jornalistas e ferindo outros 11. Tudo é justo em nome de Deus.

No Estado laico, os credos podem ser debatidos, como as ideias, para que os homens tenham direito e liberdade de ser, pensar e acreditar no que quiserem. Nas teocracias, em contrapartida, os homens são silenciados ou mortos por questionar os credos.

O Estado laico defende tanto a pluralidade das ideias como das práticas religiosas que, por fazerem parte do mundo das ideias, também estão sujeitas à dúvida. As ideias podem ser atacadas; os homens nunca por defendê-las. É o oposto das teocracias, onde as ideias ganham autoridade absoluta, sagrada, para que os homens possam ser atacados por questioná-las.

Se a justiça em nome de Deus se manifesta tantas vezes como linchamento, ato irrefletido, é porque é resultado do abandono do debate entre os homens. A blasfêmia é o ponto de viragem na desautorização da razão, do pensamento e da reflexão. E é nisso que ela serve tão bem ao Estado autocrático. Deus acima de todos é, afinal de contas, o maior excludente de ilicitude que se poderia arrumar, a garantia de que não haverá justiça no país.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas