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Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

A inquietação das Clarices é saber como e quando começa uma história

Tanta gente com bichos bem mais estranhos em casa, virando celebridade no YouTube, por que não adotar um pintinho?

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"E se?" Toda narrativa, inquietação existencial ou baita perrengue começa a partir de uma pergunta assim. "E se?" Minha amiga Clarice, por exemplo, não teve a menor dúvida. "E se eu criasse duas galinhas dentro de um apartamento? Ninguém disse que não pode, então pode." Pronto. O mundo se abriu à aventura doméstica.

Ilustração de um galináceo - Marcelo Martinez

Quando soube, fiquei horrorizada. Anos de traumas envolvendo lendas urbanas, os sapatos plataforma da banda Kiss e pintinhos que eram dados de brinde em feiras de filhotes. Dos vários que cuidei, o último acabou mastigado pela cachorra do vizinho.

"Um dos olhinhos chegou a saltar da órbita, você tinha que ter visto." Não, obrigada. "Era um
globo ocular imenso!" Por favor, vamos adiante. Clarice Lispector não tinha problema com galináceos, pelo contrário.

Escreveu para crianças "A Vida Íntima de Laura", divertida biografia de uma emplumada. Num conto famoso, até dedicou a nação chinesa ao ovo. Uma admiração replicada pela outra Clarice, minha obstinada amiga. Para agradar aos filhos e a si própria, abrigou as avezinhas.

Tanta gente com bichos bem mais estranhos em casa, virando celebridade no YouTube. Por que não? Devidamente instalados, os pintos foram batizados pelas crianças: Fuxiqueiro e Empresária. Transitavam por todos os cômodos, alimentados com moscas e besouros, mas a gourmetização logo os fez passar à ração especial, à granola orgânica e aos farelos de pão caseiro com fermentação lenta. Davam expediente andando pelo teclado e fazendo figuração nas reuniões pelo Zoom. De tão íntimos da família, cresceram acompanhando também os episódios mais emotivos de "This Is Us".


Quando Clarice caiu em si, já recebia spam de chapéus para galinhas, fraldas com suspensórios e coleiras para passear com galos. As plantas, reviradas. O sofá da sala, em frangalhos. E a maior concentração de caca por metro quadrado. O jeito foi fazer a reintegração de posse de Fuxiqueiro e Empresária, de volta à fazenda original. Ele, coitado, teve fim trágico, atacado por um gambá. Ela, fiel à máxima de que o empresariado se safa mesmo em tempos de crise, segue bem

As crianças sofreram, mas Clarice —sempre inquieta, incansável— agora prospecta adotar uma calopsita.

Já a Lispector, essa pensou além: "Você é perfeito, ovo. A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez".

Pergunto-me, então, o que veio antes nesse tão debatido começo. O ovo, a galinha ou a inquietação? Nossa e de tantas Clarices. De saber, de questionar, de tentar. "E se?"

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