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'Pelourinho' retrata o Brasil e a África como gêmeos à beira do mar

Romance do guineense Tiérno Monénembo é uma cartografia de ancestralidades no histórico bairro no coração de Salvador

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Daiana de Souza

Mestre em história, é professora e escritora

Pelourinho

  • Preço R$ 70 (192 págs.)
  • Autoria Tierno Monénembo
  • Editora Nós
  • Tradução Mirella do Carmo Botaro

"O Brasil e a África têm tanta coisa em comum! Somos feito gêmeos nas duas beiras do oceano. Só não nos acenamos. Por quê?"

Pode ser que Tierno Monénembo tenha conhecido Salvador por Pierre Verger, a quem dedica o livro. Monénembo viveu parte de sua vida em Paris, mas, ao contrário de Verger, era parte dos colonizados e não dos colonizadores.

Tinha a África como sua terra mãe, mesmo sendo um exilado da Guiné. Esteve em diáspora, como alguns dos personagens de seu livro. A semelhança entre os dois foi o total encanto pelas terras e pelo povo baiano.

Imagem de 1958 de Pierre Fatumbi Verger - Pierre Fatumbi Verger

Em "Pelourinho", seu primeiro livro traduzido no Brasil, temos uma cartografia de emoções, tragédias e ancestralidades no histórico bairro com o nome que tanto lembra a violência do açoite. Os narradores que nos levam por essas ruas com seus azulejos portugueses são um malandro e uma bordadeira cega. Mas Inocêncio e Leda Pálpebras de Coruja não são muito confiáveis, pelo que lemos desde a primeira página.

Um mesmo personagem cativa os dois narradores, mas, para Inocêncio, ele é Escritore, enquanto, para Leda, Africano. Esse homem de pele escura, sotaque diferente, que se nega a ser turista, quer encontrar seus primos em Salvador e pede que Inocêncio o ajude na busca. O convívio mexe de forma profunda com o narrador, que passa a questionar suas certezas.

Já Leda ouve desde criança uma canção que fala de um príncipe africano que a salvará dos males e espera sua vida inteira pelo encontro. Quando descobre esse homem, ela sabe que é o prometido para si —mesmo cega, enxerga tudo, porque Exu deixa.

A extrema pobreza, a falta de oportunidades e acesso a direitos básicos estão na narrativa —em alguns momentos de forma estereotipada e clichê— e, mesmo assim, para o leitor que deseja ser provocado por interpretações fora dos escritos hegemônicos, há surpresas interessantes.

"Nas duas beiras do oceano, os negreiros não puderam evitar a memória das coisas. Porque as coisas, Escritore, sabem mais do que os homens."

Escritore ou Africano não sabe o nome de seus primos, mas tem certeza que eles têm figas tatuadas nos ombros e que são descendentes de Ndindi-Furação. Leda Pálpebras de Coruja guarda a canção da infância como um grande tesouro, como se fosse um bem que orienta sua vida. Ela vê um antepassado de Inocêncio que queria conservar seu nome, Allagbada, mas foi punido até aceitar o de seu senhor.

A pesquisadora Leda Maria Martins explica a complexidade das estruturas criadas pelos negros brasileiros para manter sua cultura e conhecimento em condições tão traumáticas. Provavelmente Monénembo não conhece sua obra, mas as histórias de seu livro aplicam os conceitos que ela pesquisa.

Desde os anos 2000, após grandes esforços do movimento negro, mais escritores negros brasileiros têm sido publicados no Brasil e ao mesmo tempo, mais escritores negros das diásporas têm sido traduzidos.

Quando Monénembo escolhe o Brasil, mais precisamente Salvador, como o centro do mundo de sua história, ele faz mais do que conectar os dois lados do Atlântico, ele nos faz encarar as cicatrizes abertas de nosso passado e analisar as mazelas que década após década nossas elites teimaram em ignorar. Mas isso não apaga a herança negra.

"A África tampouco é longe. Ela está bem perto daqui, na verdade, do outro lado do mar, por assim dizer, é a porta da frente."

Tierno Monénembo escolheu voltar a Guiné em 2012 e lutar pela democracia em seu país de origem. Seu "Pelourinho" foi publicado em 1995, mas traduzido apenas no ano passado. Conceição Evaristo, para citar uma de nossas grandes autoras negras, foi traduzida para o francês apenas em 2015. Será que ele já a encontrou?

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