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Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

Descrição de chapéu

Meu dentista ensinou que o siso é o dente do juízo, mas o meu não nasceu

Unidos, ainda que tortos, nós também venceremos

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Enquanto ela falava, dando a atualização de sua vida, eu balançava a cabeça e fazia "hum, hum", tentando atinar o que havia acontecido àquele rosto. Até que, num estalo, interrompi o relato sobre seu emprego numa multinacional. "Fernanda, você... Mexeu nos dentes?".

Belo, puro e simétrico, diante de mim abriu-se um incisivo sorriso de molares perfeitamente alinhados. A mais exultante confirmação de sucesso absoluto. "Ai, amiga, você notou. Agora, sim. Tô sorrindo pra vida."

Ofuscada pela brancura daquele ideal platônico, trinquei o maxilar na hora. Não por recalque, posto que era dentição merecedora de sinceros aplausos, mas pela frase que me deixou boquiaberta. Pronta para cuspir. Dr. Valcour de alicate na mão. Uma luz do passado me cegando os olhos. E uma voz ecoando. "Logo, logo você estará sorrindo para a vida-ida-ida."

Eu tinha seis para sete anos e acreditava na fada que ainda tinha moedas a deixar sob meu travesseiro. Porém, concluíram que eu precisava urgentemente não só de aparelho, mas da expertise do profissional que há gerações consertava minha família. Hoje, pensando bem, nenhum primo tem boca de comercial de Colgate, mas a excelência do dr. Valcour era notória.

Alguns palmos mais alto que eu, não sorria nunca. O que me fazia questionar se, por ironia dentária do ofício, ele mesmo não seria banguela. Não fazia gracejos. Nunca —em tempo algum!— oferecia balinhas. Graças a ele, aprendi que o siso é o dente do juízo. "Então temos que abrir espaço, mocinha, para você ter muito juízo quando crescer."

Faltava tanto tempo para eu crescer. Mais do que a vida inteira, pois criança acha tudo uma eternidade. Fora que a perspectiva de um palato de acrílico até o fim dos dias ficava mais angustiante quando surgia a assistente do dr. Valcour. Uma simpática sexagenária que, de aparelho fixo, cunhou o mantra. "Logo, logo você estará sorrindo para a vida-ida-ida".

O logo, logo estendeu-se por anos, até que um canino cismou de não descer. Foi quando implorei a meus pais por férias odontológicas. Liberto das amarras metálicas que lhe foram impostas, clamando por autonomia, o canino enfim deu as caras. Tímido, meio de ladinho, mas orgulhoso de si.

Em apoio a ele, nunca mais voltei ao dr. Valcour. Dicção okay, respiração okay, me permiti a rebeldia. Vejo inclusive charme em pré-molares alheios levemente equivocados. Fora de ângulo. Unidos, ainda que meio tortos, nós também venceremos. E sobre meus sisos: jamais nasceram.

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