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Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

Férias, do sonho ao pesadelo

O Brasil cada vez mais longe da civilização

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Revisitei nas férias Calderón de la Barca e seu verso “la vida es sueño, y los sueños sueños son".

Meu sonho, irrealizável, materializou-se em Cambridge (Reino Unido), onde meu filho Cássio está trabalhando e morando. Em dado dia, fui com minha mulher, a Caty, e com minha nora, a Helen, buscar a neta Alice na Saint Mathews Primary School.

Fomos a pé, percorrendo 800 metros, esforço que levo uns três ou quatro dias para cobrir quando estou em São Paulo.

Funcionário da fábrica Taurus segura arma em São Leopoldo - Diego Vara/Reuters

Alice está para fazer 10 anos. À saída, encontramos um punhado de meninos e meninas de idade igual ou parecida. Nem eles vestiam azul nem elas rosa, mas isso não interessa. Os ingleses costumam mesmo ser exóticos.

Interessa o fato de que muitas crianças voltavam para casa sem qualquer adulto para acompanhá-las. A Alice até que insiste em ir (ou voltar) sozinha, mas a mãe, ainda com a cultura de paulistana assustada, não deixa (eu também não deixaria).

Fiquei lembrando de um momento bem anterior, em encontro com minha filha Clarissa, que então vivia em Londres. Saímos um dia para passear e ela filosofou: “Pai, se você soubesse como é bom poder andar pelas ruas sem precisar ficar olhando para trás".

Pois é, como é bom ter assegurado o direito de ir e vir e, mais ainda, o de viver sem tantos sobressaltos.

Impressiona, aliás, que, em Cambridge e nas seis outras cidadezinhas que visitamos, as casa não estão barricadas atrás de muros, grades, ferro. Bate-se diretamente na porta. As janelas de vidro tampouco estão protegidas.

Aí, você, armado de seu saudável espírito crítico, dirá: como é que esse imbecil quer comparar uma cidade de 130 mil habitantes como Cambridge com a megalópole que é São Paulo?

Tem razão, caro crítico. Não há como comparar uma pequena cidadezinha inglesa civilizada com o desastre urbanístico que é São Paulo —com a consequente insegurança absurda.

Mas peço licença para algumas considerações, a saber:

1 - Com que cidade vou fazer comparações? Com a Cidade do México, outro desastre urbanístico de proporções bíblicas? Com o belíssimo Rio de Janeiro, inviabilizado como local habitável nos últimos muitos anos?

Não, a comparação só pode ter como referência alguma cidade que preservou a dimensão humana, como certa vez me comentou um dos mais brilhantes diplomatas brasileiros, Victor do Prado, há anos servindo à Organização Mundial do Comércio, em Genebra (a cidade a cuja dimensão humana meu amigo se referia).

2 - Quando era um pouco mais velho que a Alice hoje, ia sozinho ao Fernão Dias Paes, a escola pública em que me formei, uns 600 metros distante de minha casa. Hoje, alguém se arrisca a deixar filho/filha de 10 anos correr esse risco, mesmo em cidades pequenas?

Como é que deixamos que nos tirassem o direito de ir e vir?

Ao voltar do Reino Unido, o sonho de uma vida civilizada virou pesadelo. Pesadelo acentuado pela liberação de armas determinada pelo novo governo. O Reino Unido tem rígida legislação de controle de armas de fogo. Por isso, tem apenas 5 armas de fogo por 100 pessoas, quando, nos Estados Unidos, em que o faroeste é livre, são quase 90 por 100.

Consequência: homicídios por arma de fogo no Reino Unido não chegam a 1 por 100 mil habitantes (exatamente 0,92). Nos Estados Unidos, quintuplicam (4,88). Em números absolutos: no Reino Unido, 594 homicídios; nos EUA, 15.696 (dados de 2012 do UNODC —sigla em inglês para Escritório da ONU para Drogas e Crime).

Ah, caro Calderón de la Barca, temos uma razão a mais para achar que, no Brasil, “la vida es una pesadilla, y las pesadillas pesadillas son".

Não volta, não, Alice. A saudade dói mas não mata. Armas matam.

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