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Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Com Cúpula da Democracia, Biden insiste no 'America First', mas com carinho

Restaurado internacionalismo dos EUA não passa de nacionalismo disfarçado

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Cúpula da Democracia —eis o nome do encontro internacional convocado por Joe Biden para dezembro, pouco depois da cúpula do G20. “Os EUA estão de volta”, repetirá o presidente americano, usando o slogan que fabricou como contraponto ao “America First” de Trump. O restaurado internacionalismo não passa, porém, de pesada maquiagem: sombra, batom, base e blush destinados a disfarçar o nacionalismo que persiste. A face sem pintura dos EUA revela-se no Afeganistão e na geopolítica vacinal.

Trump firmou com o Taleban o acordo de retirada das forças americanas e da Otan. “America First”: Biden seguiu adiante, evacuando as tropas em solo. Previsivelmente, no lugar do simulacro de negociações de paz com o governo afegão, o álibi do acordo, o Taleban avança em todas as frentes, estrangulando Cabul. Em meio à crise humanitária que se desenha, os EUA e seus aliados europeus já planejam operações de resgate de milhares de afegãos que colaboraram na guerra contra os fundamentalistas.

Ecos de Saigon, 1975. A diferença é que, ao contrário do Vietnã, a frágil ordem instalada no Afeganistão protege a dignidade mínima das pessoas: o retorno do Taleban provocará o confinamento das mulheres e a destruição das esperanças de educação das meninas. A semelhança é que, como no Vietnã, o vácuo será preenchido por poderes hostis aos EUA.

O Taleban é uma força derivada. Atrás dele, encontra-se o Paquistão –ou melhor, o “Estado profundo” paquistanês, formado pelas agências de inteligência e por parcela das Forças Armadas. A China, aliada do Paquistão, já deu sinais de aproximação pragmática com os futuros donos do Afeganistão. E, novamente, o Estado Islâmico e a Al Qaeda emergem das sombras, preparando-se para ocupar um lugar na nova ordem. Os jihadistas cumprirão o pacto tácito de poupar o Paquistão e a China, mas apenas isso. Os EUA pagarão três vezes pela retirada: nos guichês da catástrofe humanitária, da balança estratégica de poder e da vulnerabilidade ao terror jihadista.

A pandemia ofereceu a Biden a oportunidade de reproduzir, no campo da disputa com a China, o triunfo geopolítico obtido pelos EUA no confronto com a URSS, durante a Guerra Fria. Vacinar os países carentes da América Latina, Ásia e África está ao alcance das capacidades financeiras e produtivas da superpotência e dos aliados europeus. Mas, no lugar de um Plano Marshall vacinal, os governos das nações ricas do Ocidente optaram por um nacionalismo mesquinho, ao qual se acresce, como requinte de crueldade, a decisão de aplicar doses de reforço a populações imunizadas.

Nos EUA, na União Europeia e no Reino Unido, mais de 50% estão imunizados –e a vacinação perde fôlego, esbarrando no rochedo da resistência dos idiotas. Na América do Sul, inclusive no Brasil, os imunizados perfazem menos de um quarto da população. Na Ásia, são cerca de 12% –e menos em países como Tailândia (7%) e Bangladesh (3%), vergados sob pilhas de óbitos. Na África, 2%.

“Falência moral”, definiu a OMS. As nações ricas escondem-se atrás de modestas doações bilaterais, recusando-se a financiar vastas transferências multilaterais de vacinas por meio da Covax ou forçar suas farmacêuticas a partilhar tecnologias em centros regionais de fabricação de imunizantes. Nos EUA e na Alemanha, lixeiras sanitárias são o destino de milhões de vacinas vencidas.

O vírus do nacionalismo vacinal cultivado na estufa de Trump infectou o governo Biden. No plano epidemiológico, o prolongamento da pandemia descortina espaços evolutivos para o surgimento de novas variantes capazes de assombrar o mundo inteiro, inclusive os países ricos. No terreno geopolítico, a omissão dos EUA abre espaço para a projeção da influência chinesa.

Biden fingirá, na Cúpula da Democracia, que “os EUA estão de volta”. De fato, insiste no “America First” —mas com carinho.

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