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Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Paulo Gustavo teve uma passagem visceral, vitoriosa e avassaladora na minha vida

Nos tornamos próximos, mas nunca nos encontramos pessoalmente e por isso nunca o abracei

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“Djamila, você está acordada? Posso te ligar?”​

Minha história com Paulo Gustavo começou próximo à meia-noite do dia 2 de junho do ano passado, numa terça-feira.​

George Floyd havia sido assassinado uma semana antes nos Estado Unidos e aqueles dias estavam tomados por manifestações contra o racismo nas redes sociais. Nas do Brasil, veio uma profusão de telas pretas, levando-me a questionar o propósito e eficiência daquilo. Parecia tudo vão, sem sentido.

Naquele dia, Paulo, com quem até então havia interagido em razão de um lindo vídeo que ele havia feito sobre o livro “Quem Tem Medo do Feminismo Negro?”, me enviou aquela mensagem e me ligou.

Disse que tinha uma ideia ousada: que eu ocupasse a página dele durante um mês inteiro, podendo falar o que quisesse.

Prontamente aceitei. Ninguém tinha feito aquilo: ele foi pioneiro. Tamanha foi a coragem da ideia que não foi repetida em duração e conteúdo em nenhum outro lugar.

Na manhã seguinte, postamos em nossas redes a iniciativa, e a recepção foi explosiva. Milhões de engajamentos, entrevistas em TVs, rádios, jornais, sites e revistas nacionais e estrangeiras. Preparei um conteúdo para a página dele, em que pude falar sobre lugar de fala, racismo estrutural, apresentei escritoras e escritores negros e mais: juntos inspiramos inúmeras pessoas a reproduzirem o mesmo.

Ocupações passaram a tomar as redes sociais, gerando intercâmbios de conhecimentos e expansões de redes de pessoas que, seja pelo algoritmo das mídias, seja por partirem de grupos vulnerabilizados, muitas vezes têm dificuldade para serem ouvidas.

Friso mais uma vez: sua ideia foi um marco na história recente do país, um legado em que inúmeras pessoas, famosas ou não, se espelharam para propor um outro mundo possível.

Nos tornamos próximos. Fizemos algumas lives juntos, mas nunca o vi pessoalmente, não temos uma foto juntos. É engraçado isso, uma relação que tanto me marcou com uma pessoa que nunca abracei.

Nossa última mensagem era para nos encontrarmos, mas quis a vida que não fosse assim. Nosso encontro foi de almas. Trocávamos áudios, vídeos e fotos. Sim, Paulo era hilário mesmo fora das telas.

A graça nele vinha naturalmente e contagiava. Contudo, era muito mais que um sujeito engraçado. Foi também um homem sensível, preocupado com as lutas sociais e que aprendeu com o tempo a se engajar na causa antirracista.

Era um amigo que mantinha uma relação de parceria e lealdade, deixando muita saudade. Publicava tudo o que eu pedia, o que envolvia entrar em temas ainda marginalizados, como, o candomblé, em um país intolerante a essa religião.

Na maioria das vezes, me pegava de surpresa com um post incrível, inclusive com conteúdos comerciais meus, sem que eu pedisse. Posturas como essas, hoje em dia, com tanta competitividade, são raras, acreditem. Paulo foi uma pessoa rara, como seus inúmeros amigos e amigas podem comprovar.

Deixo um abraço solidário em cada um que viveu com ele uma experiência de amizade.

Deixo o abraço na pessoa de Mônica Martelli, uma querida parceira nessa aventura de intercâmbio de perfis de redes e em tantas outras. Foram semanas de internação, angústia e muita torcida, que dão espaço ao luto e às histórias que o imortalizam no coração de cada uma. Sinto muito, recebam minha solidariedade.

Paulo também foi coruja, amoroso e pontual com seus filhos, em quem dava banho todos os dias no mesmo horário.

Foi um marido que não perdia a oportunidade de externar publicamente os seus sentimentos pelo seu marido, Thales Bretas, um gesto que, além de lindo e sincero, é corajoso e educativo em um país de homofobia tão enraizada.

Ele também nos marcou por ser um excelente filho, que transformou seu amor pela mãe, Déa Lúcia Vieira Amaral, em inspiração para todo um país. A seus familiares, meus mais profundos sentimentos.

Após tomar ciência de sua morte, conversei com com Kiusam de Oliveira, ialorixá e escritora, que teve seu trabalho divulgado nas redes sociais de Paulo após minha ocupação.

Nos consolamos virtualmente, no início de um lento processo de transformar a dor aguda no peito em saudade.

Kiusam me falou que pessoas que entram de forma tão avassaladora em nossas vidas deixam uma marca eterna. Não poderia concordar mais: sua passagem na minha vida foi quente, visceral, avassaladora, construtiva, carinhosa, hilária, parceira, vitoriosa.

Agradeço muito, querido amigo.

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