Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Audre Lorde ensina a importância de se definir além das definições impostas

Essas categorizações funcionam para nos restringir, diminuir para que caibamos em certas expectativas

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“Meus críticos sempre quiseram me ver sob determinada luz. As pessoas fazem isso. É mais fácil lidar com uma poeta, certamente com uma mulher negra poeta, quando você a categoriza, a restringe, assim ela pode preencher as expectativas. No entanto, sempre senti que não poderia ser categorizada. Isso tem sido uma força e uma fraqueza. Fraqueza porque a independência me custou muito apoio. Contudo, veja só, também foi força porque me deu o poder para continuar. Não sei como teria vivido as várias coisas às quais sobrevivi e continuado a produzir se não sentisse que tudo o que sou é o que me deixa realizada e determina minha visão de mundo.”

Esse é um trecho do texto “Minhas Palavras Estarão Lá”, de Audre Lorde, publicado no livro “Sou Sua Irmã” (Ubu, 2020). Lorde fala da importância de se definir para além das definições que nos são impostas. Para nós mulheres, sobretudo mulheres negras, é um desafio viver sob valores que nos são impostos antes que a gente possa se pensar como liberdade, parafraseando Simone de Beauvoir.

Há toda uma tentativa de categorização, “seja assim”, “mulheres precisam se comportar de tal forma”, “mulheres negras são raivosas”. A partir de uma lógica patriarcal racista, mulheres negras, como afirma Grada Kilomba, são o “outro do outro”, a dupla antítese de masculinidade e branquitude. E como transcender esse olhar que tenta nos confinar em lugar de não humanidade?

mulher negra sentada em cadeira observa quadro que estampa outra mulher negra
Linoca Souza/Folhapress

Muitas vezes é mais fácil se comprazer nesse lugar do outro, atender as expectativas que foram criadas, outras, é estratégia para sobreviver. Em outras, nem sequer se entende que essas construções são sociais e há a naturalização dos lugares e comportamentos.

Por isso a fala de Lorde é tão importante: essas categorizações funcionam para nos restringir, diminuir para que caibamos em certas expectativas. E por isso a mulher que transcende é vista como perigosa, louca, aquela que não serve.

E talvez devêssemos ressignificar não servir, não caber, permitir se sentir deslocada.

Deslocada de um lugar de submissão. É um processo doloroso, como a própria autora descreve no texto, contando sobre sua infância e juventude; de como foi duro entender quem ela era.

O autoconhecimento é um desafio em uma sociedade que tenta dizer quem a gente é a depender das nossas identidades.

Eu era considerada metida por gostar de estudar. “Que neguinha metida” foi algo que ouvi muito na minha infância quando descobriam que eu gostava de jogar xadrez e havia sido medalhista no campeonato santista ou por tirar sempre boas notas e ser estudiosa.

Cresci sendo categorizada, deve ser por isso que Lorde me encanta tanto, pois também sempre escapei.

“Escrevo sobretudo para aquelas mulheres que não falam, que não verbalizam, porque elas, nós, estamos aterrorizadas, porque fomos ensinadas a respeitar mais o medo que a nós mesmas. Fomos ensinadas a respeitar nossos medos, mas devemos aprender a nos respeitar e respeitar nossas necessidades.”

A partir desse outro trecho do texto, podemos perguntar: quantas vezes nós somos forçadas a atender as necessidades do outros? Por que o lugar do cuidado é fixado nas mulheres? Quantas vezes sentimos medo do julgamento e não mostramos quem realmente somos?

Em um evento internacional recente que participei, com feministas negras do continente africano e europeu, foi dito algo que me marcou muito: para além de estarmos envolvidas em movimentos políticos, precisamos entender que é necessário amor. Não esse amor piegas, mas o amor pela humanidade da outra, de entender os processos de cada uma, de acolhimento.

A escritora Audre Lorde - Reprodução

Exercitar a ética do cuidado, já disse Toni Bambara, “a primeira revolução precisa acontecer dentro de nós”. Justamente por isso é preciso estar atenta para não reproduzir lógicas de categorização com outros grupos. Trabalhar as dimensões espiritual e emocional, muitas vezes negligenciadas ou vistas como menores ou crendices. Daí temos tanta gente querendo mudar o mundo, mas sendo exatamente o que diz combater.

Lorde foi uma mulher sem medo de criticar os próprios movimentos sociais que reforçavam as visões de restrição.

Não teve medo de trazer as verdades incômodas, seguiu escapando e nos inspirando a transcender também, a ter coragem para pagar o preço.

“É claro, sempre haverá pessoas na minha vida que me dirão: ‘Bem, aqui, você se definia como isso e aquilo, para excluir outras partes de mim. Comete-se uma injustiça com o eu ao fazer isso, uma injustiça para as mulheres para quem escrevo. Na verdade, é uma injustiça que envolve todo mundo. O que acontece quando você estreita sua definição para aquilo que é conveniente, ou que está na moda, ou o que é esperado, é a desonestidade pelo silêncio”.

P. S.: Meus sinceros sentimentos pela morte do colega de Folha Contardo Calligaris.

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