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Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

Cachorro também é gente

Declaração Universal dos Direitos Humanos faz 70 anos, mas mobilização é por morte de cachorro

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A morte de um vira-lata agredido a pauladas pelo segurança de um hipermercado comoveu brasileiros e vem mobilizando instituições e organizações da sociedade civil desde a semana passada.

Cachorro que foi morto a pauladas numa unidade do Carrefour em Osasco, na Grande SP - Divulgação

O caso, ocorrido no Carrefour de Osasco, na Grande São Paulo, foi registrado em fotos e vídeo, que levaram ao protesto de ativistas pelos direitos dos animais, a um boicote de consumidores contra a rede de hipermercados, à abertura de inquérito pelo Ministério Público de São Paulo e à apresentação de um projeto de lei no Senado Federal para aumentar a pena para maus-tratos contra animais.

A violência contra um ser vivo é sempre deplorável. Mas é irônico que tamanha empatia com o assassinato de um cão se dê às vésperas do aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, hoje sob forte ataque no Brasil.

O país é recordista em números absolutos de homicídios. Em 2017, 63.880 pessoas foram mortas de forma violenta no Brasil, que também é um dos líderes globais no assassinato de defensores de direitos humanos.

O caso recente mais emblemático é o da vereadora carioca Marielle Franco, cuja morte brutal, há nove meses, permanece sem solução.

Mais da metade dos brasileiros (57%) concorda com a frase “bandido bom é bandido morto”, cuja premissa é a de uma violação do direito à vida —um lastro que distingue a vingança da Justiça, ou seja, da justa punição institucional de um crime.

Isso porque direitos humanos são universais (para todos) e inalienáveis (nada nem ninguém pode suprimi-los). Não são privilégios para criminosos nem são benefícios para os chamados humanos direitos. São a distinção entre a civilização e a barbárie.

O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) tem reforçado o desvirtuamento da noção de direitos humanos ao atacar minorias e pregar o chamado excludente de ilicitude, segundo o qual policiais que matam em serviço ficariam isentos das justas investigações sobre o ocorrido.

Neste contexto, é bom lembrar que os 30 artigos da Declaração Universal foram inspirados nas ideias iluministas e liberais, mas elaborados à sombra do Holocausto, quando judeus, considerados ameaça, foram presos e mortos aos milhões em campos de concentração nazistas.

Sob essa pressão, os idealizadores do documento estabeleceram o contrato social que nos diferenciaria do reino animal, onde vale a lei do mais forte.

Eleanor Roosevelt segurando a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1949 - ONU NewsMedia

O filósofo australiano Peter Singer escreveu no livro "Libertação Animal" (1975) que é moralmente errado tratar não-humanos de forma desumana.

Até o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que costuma se referir a ativistas por direitos humanos como "vagabundos", se mostrou sensível ao argumento de Singer num vídeo em que chama o agressor do cão do Carrefour de "monstro" e diz que a morte do animal é "algo que sensibiliza a todos nós".

Num país em que seres humanos são tratados como cachorros, mas que a morte de animais às vezes sensibiliza mais do que a de crianças e adultos, assegurar os direitos dos animais pode ser o caminho para, quem sabe, um dia, garantirmos o respeito aos direitos de cada um de nós.

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