Siga a folha

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Caetano, Marisa Monte e outros mostram que algo se move no lodaçal do Brasil

Após quatro anos na UTI pela surra eleitoral e pela praga, parece que chegamos ao fim da apatia crônica

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Em criança, eu costumava ser arrastada pelos meus pais para o Canecão, para assistir aos shows de Chico, Bethânia, Caetano, Gil, Gal e Milton. Pequena demais para entender a situação do país, eu percebia a importância de estar presente, tanto pela insistência paterna quanto pela comoção da turba. Era ato de resistência. Jamais esqueci.

Cinquenta anos depois, numa mesa do Vivo Rio, sou tomada pelo mesmo sentimento de relevância histórica, de potência da arte, frente à brutalidade geral, com "Meu Coco", de Caetano Veloso. A noite me despertou do coma das últimas estações.

Publicada nesta quarta-feira, 6 de julho - Marta Mello

"Meu Coco" é contundente, sóbrio, direto, duro, maduro e manemolente. "Meu Coco" é político. O rigor do cenário póstumo de Hélio Eichbauer —cujo esboço foi descoberto por Luiz Henrique Sá no acervo do artista—, somado ao drama da iluminação de Fernando Young emolduram a formação em V dos músicos, com tambores da Bahia e do Rio em confronto com o naipe de teclado e cordas. No centro, a voz, o farol.

O espetáculo traz canções do exílio e do Brasil cu do mundo, para sempre fora da ordem. O "não vou deixar" de uma das composições do último álbum traça o norte do roteiro. A excelência de Caetano em cena, de Kainã do Jêje, Pretinho da Serrinha e Thiago da Serrinha, Lucas Nunes, Hélio e Haroldo de Campos nos lembra de que somos também aquilo, que possuímos poesia, beleza e bossa. Sem samba não pode, ninguém ali ia deixar.

Eu tinha me esquecido da sensação de assistir a um show com público, e cheguei a crer que o hábito se perderia, nesse mundo entocado da peste. As manifestações de rua reduzidas ao alívio cômico dos panelaços, à solidão virtual. Sentada na plateia de "Meu Coco", em meio a outros tantos civis combatentes, senti se firmar o ato de resistência do Canecão da infância.

Algo se move no lodaçal, pensei.

"Portas", de Marisa Monte, marcou meu retorno aos anfiteatros lotados. Mais de 3.000 pessoas encheram o HSBC Arena para cantarem em uníssono os 30 anos de repertório da artista. Marisa voltava para a estrada depois de longa ausência, acompanhada de extraordinária banda, cenário, projeções e figurino de ópera. Cleópatra de "Asterix" em cortejo, ela decretava o fim de um ciclo nefasto.

E muitas das canções de amor da diva, revistas nesses tempos odientos de agora, ganharam sentido diverso. Uma angústia grave, nunca vista, implodiu no salão, ao término do segundo bis. Marisa desapareceu pela coxia, deixando a multidão entregue à própria voz, e a Barra da Tijuca do Vivendas ecoou à capela: "o que a gente fez da nossa vidaaaaaa?". A rotina não nasceu com esse show, mas soou diferente na ocasião.

Algo se move no lodaçal, eu já havia pensado então.

Uma mudança de vento que Renato Terra detectou em "No Entanto, Ela Se Move", no seu blog da Folha. O fim da apatia crônica, depois da surra eleitoral de 2018 e do nocaute da praga de 2019.

Entre os exemplos citados por Terra estão as vitórias da jornalista Patrícia Campos Mello, de Gregorio Duvivier e das deputadas Sâmia Bomfim e Talíria Petrone em ações de injúria e difamação movidas contra Jair, o MBL e Carla Zambelli. Acrescento à lista o afastamento de Pedro Guimarães da presidência da Caixa, a investigação do mercado das bíblias do Ministério da Educação de Milton Ribeiro e o repúdio ao espancamento da procuradora Gabriela de Barros, à conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer e ao assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips.

Para os que procuram os sinais de vida inteligente na Terra, sugiro ouvir Mano a Mano, podcast de Mano Brown que traz, entre tantas pérolas, um papo reto sobre racismo, domesticação, liberalismo e cotas com a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro.

No horário nobre da novela tem perspectiva ameríndia para milhões, com a mulher onça e o velho sucuri de Pantanal.

Para os que zelam pela família tradicional, é mister conferir o documentário da família Gil, no Prime Video.
Nas letras, Laurentino Gomes lança o último volume de "Escravidão"; Machado de Assis reencarna no Sérgio Rodrigues em "A Vida Futura", e Marcos Nobre disseca a ascensão da extrema direita de Jair em "Limites da Democracia".

Outras bolhas, eu sei, organizam motociatas, difamam as urnas e abrem clubes de tiro. Na melhor das hipóteses, vai ser horrível. Trato, aqui, da ressurreição da bolha à qual pertenço. Depois de quatro anos na UTI, algo se move no lodaçal.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas