Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.
Às favas com a verdade
Apoio a declarações falsas teve sete vezes mais interações nas redes sociais
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Ex-funcionário de uma agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp foi convocado na terça-feira (11) a prestar depoimento na comissão parlamentar que investiga a disseminação de notícias falsas na eleição.
Hans River do Nascimento foi fonte de uma reportagem da Folha, publicada em dezembro de 2018, sobre o uso fraudulento de nomes e CPFs no disparo de mensagens pelo aplicativo. Diante de deputados e senadores, Hans River ofereceu informações falsas e fez acusações contra uma das autoras da matéria, Patrícia Campos Mello.
A repórter juntou provas —capturas de tela de conversas, áudios e documentos enviados pelo agressor—e rebateu ponto a ponto as mentiras reproduzidas nas redes sociais.
Desmascarada a mentira, diferentemente do esperado, não houve um recuo nas postagens. O que se viu nas redes sociais foi uma enorme disposição em negar provas e evidências, num grande movimento de manada rumo à desinformação.
Prevaleceu a tendência a acreditar apenas no que é conveniente —o chamado viés de confirmação, conceito cada vez mais relevante no jornalismo.
Levantamento exclusivo feito pela empresa de análise de dados Bites deixa isso claro.
A Bites analisou posts de deputados federais em seus perfis oficiais no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.
Entre a tarde de terça-feira (11) e as 18h de sexta-feira (14), os deputados publicaram 9.644 posts, alcançando 11,7 milhões de interações (entre curtidas, retuítes, comentários e compartilhamentos).
Três assuntos sobressaíram, todos de alguma forma ligados ao governo ou à família Bolsonaro: a morte do miliciano Adriano da Nóbrega, a fala do ministro Paulo Guedes sobre viagens de domésticas à Disney e o "show" de Hans River.
Embora em número de posts os preconceitos destilados por Guedes tenham ficado à frente (372 posts contra 187 da comissão e 122 do miliciano), a performance de Hans River foi imbatível em interações: 873.179 interações nas redes oficiais dos deputados, ou o equivalente a 7% do total do período (contra 460.533 de Guedes e 291.868 do miliciano).
Em defesa da jornalista da Folha, 37 deputados publicaram 127 posts com 113.757 interações—defesa feita pelo PT e legendas próximas, ressalvadas algumas exceções.
No campo dos apoiadores das declarações de Hans River contra a repórter da Folha, apenas sete deputados produziram 60 posts que alcançaram assombrosas 759.422 interações, ou quase sete vezes mais que o movimento de defesa.
Das 60 publicações dos sete deputados, 23 partiram da conta de Eduardo Bolsonaro. Sozinho, o filho do presidente alcançou 50% das interações contrárias à jornalista.
Performances como as criadas por Hans River reforçam convicções e animam a tropa virtual a continuar o processo difamatório nas redes. Não há o que os faça parar porque a verdade—e aqui não estou falando de grandes questões filosóficas, mas do que aconteceu ou não—não importa.
Por trás disso, há método. A confusão é armada para criar um ambiente em que tudo vira uma versão e cada um pode escolher a sua. E, se algo der errado, há sempre a possibilidade de dizer que não foi aquilo que foi dito, que houve má interpretação dos fatos ou que não foi dito o que foi dito.
O mais duro é que, às vezes, a imprensa contribui para empurrar a verdade para o brejo.
Na seção "Tendências / Debates" do último sábado (8), o jornal decidiu perguntar se o design inteligente, tido como vertente do criacionismo, seria uma teoria científica válida.
Como disse um leitor, em nome de um suposto equilíbrio jornalístico, o jornal colocou em discussão—e em pé de igualdade—séculos de constatações científicas. Útil ao ambiente de confusão ou não?
A imprensa não pode se deixar confundir com as redes sociais, contribuindo para que a verdade seja colocada em xeque —o que faz quando trata a ciência como uma versão em disputa com o criacionismo. Uma boa reportagem teria dado conta da curiosidade legítima do leitor pelo tema.
Tudo pode virar uma questão de opinião: os fatos que a reportagem sobre os disparos em massa apurou, terraplanismo ou a eficácia das vacinas.
No fim das contas, tanto o "show" de Hans River quanto o "debate" entre ciência e criacionismo contribuem para as guerras de informação e alimentam as estratégias de disseminar ideias equivocadas.
No segundo caso, o do falso debate, a imprensa não pode se deixar levar por polêmicas que até podem trazer audiência, mas, num prazo maior, comprometem a credibilidade.
Quanto às milícias virtuais, o jornalismo não vai convencê-las. Portanto deve gastar energia com aqueles que buscam entender os fatos para chegar às suas próprias conclusões.
Já a Folha precisa se colocar contra a mentira, seja ela qual for, de modo tão enfático quanto fez na semana que passou.
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