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Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Descrição de chapéu Argentina Todas

A velha ressaca da América Latina

Conosco, naquela sala, estavam nossas memórias de ditadores e torturados no Brasil e na Argentina

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Tirei uns dias de férias para rever mi Buenos Aires querido. Eu não aparecia por lá havia mais de 15 anos, desde que parei de fazer viagens de trabalho constantes para a cidade. Como se pode imaginar, a querida está sofrida, visivelmente sofrida, com sinais de pobreza nas ruas, imóveis abandonados, um comércio menos pujante do que em outros carnavais. Sem falar em uma certa atmosfera que só fui decifrar melhor depois de visitar um casal de amigos.

Conheci os dois na infância, quando eram meus colegas de escola, em Curitiba. Ela, filha de uma exilada da ditadura argentina. Ele, filho de um casal que também deixou o país em decorrência de resultados do regime. Cresceram no Brasil e, muitos anos depois, se reencontraram e casaram, já na sua terra natal.

Villa 31, no centro de Buenos Aires, uma entre as 1.200 favelas que surgiram nos últimos 6 anos na Argentina - Folhapress

Sempre mantivemos contato mas, em todos esses anos, nos vimos poucas vezes. Tínhamos, portanto, décadas para pôr em dia. Figurinhas para trocar, não mais as do Zequinha ou da Copa, aquelas do mundo adulto, nem sempre tão coloridas. Falamos de trabalho, dos filhos, dos nossos adolescentes prestes a entrar na vida adulta.

Que vida adulta? Ainda bem que já estávamos na segunda garrafa de vinho, meio entorpecidos, porque o futuro não parece ser aquele que pintamos nas cartolinas da escola. Conversamos sobre o 8 de janeiro e as manifestações pedindo pela volta da ditadura. Sobre o bolsonarismo ainda tão vivo e o medo que logo voltará a rondar as nossas urnas. Eles falaram sobre desmonte que Milei está fazendo em tantos setores, com o argumento raso que virou até meme e camiseta: no hay plata! Mas o pior mesmo, meu amigo pontuou, nem é isso, é nunca sabermos quantos anos pode durar um governo.

A isso se seguiu um silêncio breve mas espesso. Ele tinha tocado no ponto nevrálgico da experiência latino-americana. Conosco, naquela sala, estavam as nossas memórias. Uma lista de ditadores. Os mortos e torturados de um lado e de outro das fronteiras. A insistência dos novos fascistas em negar e apagar a história. Os fatos recentes, como a provável fraude eleitoral na Venezuela. E a sensação, há muito cristalizada em certeza, de que a América Latina não consegue parar de andar em círculos.

Por aqueles dias eu relia "Os Detetives Selvagens", romance de Roberto Bolaño. Um autor que sublinha, com sua ficção, o quanto a trajetória do latino-americano é marcada pela instabilidade política na região, ele mesmo um autoexilado da ditadura chilena. "Homens que entraram nus no turbilhão da história e que saíram vestindo os mais brilhantes e atrozes farrapos", sublinhei em uma das páginas.

Quando me despedia dos meus amigos, do lado de fora de sua casa, percebi que a atmosfera estranha que senti nas ruas por aqueles dias vinha desse fio de tensão sempre prestes a ser rompido. De nunca sabermos o que vem depois, com que roupas ou farrapos acordaremos no dia seguinte.

Fico imaginando o que vamos conversar no próximo jantar, daqui a alguns anos. O que nossos filhos conversarão. Ainda bem que sempre teremos o Malbec. E o abraço fraterno de quem sabe exatamente o que o outro está passando.

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