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Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Música sertaneja era para se ouvir e sofrer junto antes de se tornar dançável

Baladas melosas dominavam até os anos 2000, quando gênero passou a incorporar o forró universitário e outros

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Embora às vezes pareçam muito estáveis, os gêneros musicais mudam de tempos em tempos. Uma das mudanças mais significativas na música sertaneja foi a incorporação da dança como uma prática obrigatória. Hoje é impossível ir a um show de música sertaneja e não dançar. Não era assim.

Para quem, como eu, começou a ouvir música sertaneja nos anos 1980, a incorporação da dança chama a atenção. Quando a música sertaneja tomou todo o Brasil, tornando-se a principal música popular de massa do país na virada dos anos 1980 para os anos 1990, não era comum se dançar nos shows. Pelo contrário, a música sertaneja era frequentemente criticada justamente por ser uma música sorumbática, melodramática, pouco animada e não dançável.

De fato, imperava nos anos 1990 as baladas melosas, muitas delas flertando com a estética da solidão e com a "dor de corno". Não eram canções animadas, e o ritmo não cooperava para que bailarinos flanassem pelo salão. Era mais um gênero para ser degustado pelos ouvidos, para sofrer com a alma. Ainda não havia o termo "sofrência", mas era muito claro que a música sertaneja visava atingir emoções inefáveis, não as sensações corpóreas ligadas à dança.

Havia poucas exceções dançáveis, como a animada "Mexe Mexe", gravada por Leandro & Leonardo em 1993: "Festa na roça é pra lá de bom/ O sanfoneiro é que comanda o som/ A gente dança a moda sertaneja/ Tomando cerveja, comendo batom […] /É um mexe, mexe/ Todo mundo apronta/ Faz o que dá conta/ É um beija, beija…".

A dupla sertaneja Leandro & Leonardo em fotografia de 1997 - Divulgação

Mas não era essa a regra quando se tratava da dupla goiana. "Solidão", composição de Zezé Di Camargo mas que se tornou famosa na voz deles em 1986, não era para se dançar. O mesmo acontecia com "Entre Tapas e Beijos", "Pense em Mim", "Desculpe Mas Eu Vou Chorar", "Talismã" , "Paz na Cama", "Sonho por Sonho", "Não Aprendi a Dizer Adeus", "Não Olhe Assim" e "Temporal de Amor". Nenhum destes enormes sucessos da carreira dos irmãos entre 1989 e 1993 era dançável.

O mesmo acontecia na trajetória de outros sertanejos, como Zezé Di Camargo & Luciano. Canções como "É o Amor", "Eu Te Amo (And I Love Her)", "Coração Está em Pedaços", "Muda de Vida", "Me Leva para Casa", "Saudade Bandida", "Salva Meu Coração" e "Você Vai Ver", grandes sucessos entre 1991 e 1994: nenhum deles era dançável. O mesmo se aplica ao repertório de várias outras duplas do gênero, caso de Chitãozinho & Xororó, Milionário & José Rico, João Mineiro & Marciano, Gian & Giovani, Chrystian e Ralf.

A mudança veio a partir de 2005, com a nova geração chamada de sertanejos universitários. A partir de fusões com gêneros distintos, especialmente o forró universitário dos anos 2000, a música sertaneja foi incorporando uma levada que passou a ser dançável.

As carreiras de João Bosco & Vinícius, Luan Santana, Michel Teló e Cristiano Araújo não podem ser corretamente dimensionadas sem se levar em conta esta transformação radical do gênero. Nos anos 2010, a incorporação do arrocha nordestino aprofundou a incorporação da dança. Nos anos 2020, a combinação da bachata e do reggaeton latinos ao sertanejo levou adiante a proposta.

Um gênero musical é sempre tensionado a partir da negociação de seus artistas e o público. Se um artista fizer algo muito distante do que se espera daquele gênero, pode ser posto numa espécie de geladeira pelo público insatisfeito.

O curioso é que, no caso do sertanejo, estes limites são bastante frouxos. De tempos em tempos novos ritmos são absorvidos. Desde os anos 1950 já entraram na música sertaneja gêneros como guarânia, chamamé, rasqueado, ranchera, bolero, rock, brega, forró, funk, arrocha, bachata, reggaeton, entre outros.

Mesmo com todas estas transformações, ainda associamos o sertanejo a uma identidade fixa, como se fosse sempre o mesmo ao longo do tempo. Os críticos quase sempre se esmeram em apontar que há poucas inovações na música sertaneja. Isso não é verdade. Qual outro gênero musical se transformou tanto e de forma tão radical e, ao mesmo tempo, tão bem sucedida? É possível imaginar a bossa nova, o rock ou mesmo o samba vivendo tamanha transformação e ainda assim sendo facilmente identificados? É possível, em outros gêneros, que as gerações mais novas façam tamanhas modificações e ainda assim sejam entendidas como pertencentes a uma mesma tradição musical?

Esta é uma das principais características da música sertaneja: um devir constante, mas que ainda assim é vivido como uma linha evolutiva de um mesmo gênero por seus integrantes. Trata-se de um paradoxo interessante e frequentemente subestimado por nossos críticos musicais.

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