Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso

Música de Chitãozinho e Xororó tornou o sertanejo inescapável no Brasil

'Fio de Cabelo', canção gravada em 1982, foi um dos principais hits da dupla, que mudou o patamar de sua fama

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Há 40 anos foi gravada a canção que é um dos principais marcos da música brasileira. Trata-se de "Fio de Cabelo", lançada por Chitãozinho e Xororó em 1982.

Não há quem não conheça a música nos dias de hoje. A composição de Darci Rossi e Marciano tornou-se um hino melodramático das multidões: "E hoje o que encontrei me deixou mais triste/ Um pedacinho dela que existe/ Um fio de cabelo no meu paletó/ Lembrei de tudo entre nós, do amor vivido/ Aquele fio de cabelo comprido/ Já esteve grudado em nosso suor".

A principal influência de Marciano, compositor que formava dupla com João Mineiro desde 1970, era a música mexicana: "Eu adorava música mexicana, achava divertido ouvir um mariachi cantando, dando aqueles gritos no meio das músicas, e eu fazia isso quando cantava as minhas", disse Marciano. De fato, a música do México, especialmente o bolero e a rancheira, famosas pelo tom melodramático, eram muito cultuadas pelos sertanejos. O maior sucesso de Milionário e José Rico era, exatamente nessa época, uma rancheira, "Estrada da Vida".

Retrato da dupla sertaneja João Mineiro e Marciano, sendo este um dos compositores de 'Fio de Cabelo', hino da música sertaneja - Arquivo Folhapress

Mas, curiosamente, "Fio de Cabelo" não saiu como um bolero ou rancheira, mas como uma guarânia. Assim como os gêneros mexicanos, a guarânia paraguaia entrou na música brasileira há 70 anos, e o marco inicial foi o enorme sucesso de "Índia", composição de José Asunción Flores, regravada por Cascatinha e Inhana em 1953.

Tanto as carreiras de Chitãozinho e Xororó quanto de João Mineiro e Marciano, este último compositor de "Fio de Cabelo", estavam em franca ascensão. Os paranaenses Chitãozinho e Xororó vinham crescendo em vendas desde que gravaram em 1979 a canção "60 Dias Apaixonado" e, em 1981, "Amante Amada". Em 1980 João Mineiro e Marciano conseguiram um grande sucesso com a gravação de "Esta Noite Como Lembrança", pela gravadora Copacabana. Se Marciano tivesse gravado a própria composição, é possível que sua dupla tivesse se tornado maior do que foi. Mas ele recuou.

O próprio compositor não botava muita fé na composição, pois todos a achavam melodramática e melancólica em demasia, mesmo para os padrões da música sertaneja. Assim, sua própria dupla perdeu a oportunidade de gravar aquele que foi, ao lado de "Entre Tapas e Beijos", lançada por Leandro e Leonardo em 1989, a música sertaneja de maior sucesso da década: "Eu mostrei [a música pronta] pro João Mineiro e ele achou muito pesada pra época, achou que precisava de músicas mais leves, mais jovens, pra pegar um público novo, e a gente acabou descartando. Mandei, então, pro Célio Roberto, que estava estourado, e ele também não quis. Decidi mandar para Valderi e Mizael, que tinham um programa na rádio Record", contou Marciano.

"Um dia o Chitãozinho estava na rádio e ouviu a dupla ensaiando a música, gostou e pediu para gravar. O Valderi comentou que achava a música boa, mas que o começo era muito baixo e o refrão muito alto, então não caberia na voz deles, e mandaram o Chitão e o Xororó me procurar. Três meses depois de ter sido gravada, a música já estava estourada no Brasil todo, e aí minha carreira deslanchou", disse o músico.

Na capa do disco "Somos Apaixonados", um retrato dos jovens irmãos de origens indígenas. Hoje quase não enxergamos os traços indígenas de Chitãozinho & Xororó. Diante do sucesso e do enriquecimento, é comum a sociedade brasileira "embranquecer" aqueles que ascendem socialmente. O que talvez também dificulte este reconhecimento é que esses descendentes de indígenas vestiam roupas modernas, ternos brancos, camisas de botão alinhadas, cordões, pulseiras e relógios.

Fazia parte da estética da música sertaneja da época a incorporação da urbanidade. Quase sempre nosso olhar preconceituoso busca associar estereótipos indígenas ao folclorismo primitivista. A capa do disco dos irmãos paranaenses mostrava outra realidade.

Na contracapa do LP a dupla aparecia ao lado da banda também em roupas modernas e o furgão no qual viajavam Brasil afora ao fundo. No texto da contracapa eles retribuíam àqueles que julgavam corresponsáveis pelo sucesso até então: "Queremos agradecer a todos os programadores do Brasil pela execução de nossos discos e gostaríamos de contar mais uma vez com o incentivo e o apoio de todos vocês neste novo trabalho".

Mas Chitãozinho e Xororó não esperavam tamanha repercussão. "Fio de Cabelo" ultrapassou a marca de 1 milhão de exemplares vendidos. Impulsionado pela canção, o LP "Somos Apaixonados" conseguiu algo raro até então. Antes de "Fio de Cabelo", os discos de maior sucesso sertanejos vendiam no máximo 300 mil exemplares. Fazia apenas cinco anos que Roberto Carlos havia conseguido pioneiramente vender 1 milhão de exemplares de um único disco, em 1977. Era algo impressionante, uma conquista e tanto.

"Fio de Cabelo" catalisou uma transformação que já vinha acontecendo na música sertaneja, da qual Chitãozinho e Xororó eram um dos seus protagonistas. A dupla defendia com veemência a necessidade de elevar as qualidades técnicas do gênero sertanejo, transformando-o num produto diferenciado.

Até então a música sertaneja era quase sempre mal gravada, voltada para públicos dos interiores e rádios AM de programação matutina e vespertina. Os shows aconteciam em circos nos interiores e nas periferias das cidades. O gênero praticamente não tocava nas então modernas FMs, seja por sua qualidade inferior de gravação, seja por pressão dos programadores e do público. Pois "Fio de Cabelo" rompeu essas determinações e começou a colocar a música sertaneja em outro patamar.

O sertão começou a virar big business, os shows, grandes produções, os rodeios e festas do interior tornaram-se grandes acontecimentos massivos. Pois foi com "Fio de Cabelo" que se provou que havia público consumidor para tal produto em larga escala. Estava armado o caminho para a crescente nacionalização do gênero na virada dos anos 1980 para os anos 1990, quando o sucesso da música sertaneja tornou-se inescapável em qualquer lugar do Brasil. A partir do sucesso de "Fio de Cabelo" a música sertaneja encontrou um caminho para se tornar um gênero nacional, rompendo as amarras técnicas e mentais que a prendiam ao regionalismo e ao folclorismo.

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