Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu mídia

Sucesso do sertanejo não se explica só pelo jabá, mas pela diplomacia musical

Conhecida como caitituagem, a prática que une músicos caipiras envolve visitas a emissoras e políticos do interior do Brasil

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A música sertaneja é oriunda dos interiores brasileiros. Desde meados dos anos 1980 ela também toca nas principais capitais do país, mas seu habitat são as cidades do interior. Já mostramos aqui nesta coluna que grande parte dos artistas sertanejos são oriundos do interior. E que os sertanejos têm apreço por gravar CDs e DVDs em palcos de pequenas e médias cidades dos interiores do Brasil. O sucesso da música sertaneja é em grande parte fruto desta política.

No entanto, quase sempre os críticos da música sertaneja demarcam que a popularidade do gênero se deve ao jabá, ou seja, à prática de se pagar para ter sua música tocada insistentemente nas rádios do país. De fato, a prática do jabá sempre existiu e não pode ser negada. Mas a relação com os interiores não se resume à compra de espaço em emissoras locais.

A cantora e apresentadora Inezita Barroso, durante apresentação na Rádio Nacional, em 1952 - Acervo UH/Folhapress

Para além do jabá, entre os artistas sertanejos é praxe também fazer a caitituagem, termo que se refere a uma prática que vem desde os tempos das rádios AM. Trata-se de visitar as pequenas emissoras do interior e construir boas relações com radialistas, programadores, empresários, políticos e público.

Quando um artista visita uma cidade do interior, ele não faz apenas o show. Antes e depois do espetáculo, há uma série de compromissos importantes para a consolidação do artista nos grotões do país. Estações de rádio, que ajudam a divulgar o show, são os principais lugares a serem visitados. Entrevistas e sorteios de ingressos e brindes são praxe. Mas há também visitas a autoridades e, dependendo do tamanho da dupla, campanha pelas ruas para atrair o público.

Até Marília Mendonça, no auge da fama, fez caitituagem nas ruas por onde apresentou seu "Todos os Cantos", em 2019. Ela não precisaria, tamanha a sua fama. Mas a ideia de "Todos os Cantos" era fazer um show-surpresa em cada capital do país.

Se houvesse divulgação em larga escala, isso inviabilizaria a apresentação nas praças públicas, algumas de tamanho reduzido. Os shows da turnê não foram comunicados ao grande público, então Marília optou por dar "um passo atrás" na carreira e voltar à caitituagem mais básica.

Ela saía de manhã e de tarde pelas ruas das cidades por onde faria a apresentação, chamando o público para seu evento, distribuindo panfletos, abraçando fãs, tirando selfies, sempre sorridente.

Após os shows a caitituagem continua. É preciso receber os fãs no camarim, tirar fotos com patrocinadores, puxar o saco de autoridades locais, sorrir simpaticamente para todo tipo de insistente pedido. Essa tarefa pode envolver jantares e festas também. Quase sempre a caitituagem toma mais tempo que o show propriamente dito.

Aqueles artistas que não se prestam a esse cansativo papel são vistos pelo público e patrocinadores como "chatos" ou "metidos". Caso exemplar é o de Paula Fernandes, tão pouco afeita a esse desgastante trabalho de hora extra que já foi tachada de "antipática" algumas vezes.

Em 2018, a prefeitura de Taquari, no Rio Grande do Sul, contratou a cantora para um show na cidade. Logo após o concerto, Fernandes não teria recebido o mandatário da cidade no camarim. Indignado, o prefeito Maneco Hassen publicou em suas redes sociais: "Ignorou todos os fãs. Gente que veio de longe. Baita mala", disse o político. Em outro comentário, Maneco enfatizou: "Linda atitude no palco. Nos bastidores é uma mala completa". E completou: "Arrogante e mal-educada".

A fala do prefeito ilustra que se espera muito mais do artista sertanejo do que simplesmente cantar no palco. Discordando das críticas, Paula Fernandes falou em entrevista à jornalista Fabiana Pereira em 2021 no canal Papo de Música, disponível no YouTube: "Eu sempre fui muito séria. Mais um motivo para dizerem que eu sou metida ou que eu sou antipática. Mas eu estava ali para fazer o meu trabalho".

A cantora se justificou por desviar de jantares e festas pós-show: "Não estava ali para tomar cachaça com o contratante, não estava ali para poder ficar de ‘trelelê’ com ninguém. Isso foi malvisto muitas vezes", contou Fernandes.

Os críticos da música popular muito raramente analisaram a sério o papel da caitituagem. Prefere-se enfatizar o jabá, pois essa prática é a mais óbvia, direta e objetiva, fácil de ser notada e criticada. Trata-se da simples compra do espaço na mídia. A caitituagem, por sua vez, é menos óbvia e envolve relações complexas e instáveis, não objetivas e não totalmente lapidadas pelo uso extensivo do dinheiro. Às vezes o dinheiro pode até ser um atrapalhador da caitituagem. Um artista com muito dinheiro pode ser visto como "metido".

A caitituagem é uma prática que não pode ser compreendida só através da força do dinheiro. Trata-se mais de trabalho de formiguinha cotidiano, cansativo e desgastante. Torturante para muitos artistas, mas em alguma medida necessário para o sucesso massivo.

A caitituagem remete diretamente a antigas tradições brasileiras já descritas por Sergio Buarque de Holanda em seu texto "O Homem Cordial", que integra o clássico livro "Raízes do Brasil", publicado em 1936.

Segundo Holanda, a afetividade é uma marca da cultura brasileira. Daí a palavra "cordial", ou seja, relativo ao coração. As relações sociais no país são mais mediadas pelas relações pessoais e afetivas do que por uma racionalidade objetiva, prática e determinista. A atuação e a performance são, assim, fundamentais para a construção de boas relações. Ser "simpático" é tão ou mais importante do que comprar espaços na base do "pagou-levou".

Analisar a caitituagem é analisar o Brasil em suas entranhas. Trata-se menos da força do capital e do poder em sentido estrito, e mais de uma espécie de soft power, uma negociação que envolve camaradagem, afetividade, boas relações e simpatia. Se o jabá é o imperialismo do capital, a caitituagem é a diplomacia musical. O sucesso sertanejo se explica através de ambos.

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