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Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Descrição de chapéu LGBTQIA+

O queernejo na indústria cultural

Até quando os artistas LGBTQIA+ terão que ser monotemáticos para serem ouvidos?

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Será lançado nesta sexta o disco "Cavalo de Troia" de Reddy Allor em parceria com Gabeu. Distribuído pela Som Livre, o álbum é mais uma aposta de uma grande gravadora em artistas do queernejo, estética que mistura pautas LGBTQIA+ com música sertaneja. Será um teste de fogo para o gueto do queernejo, que enfrenta dificuldades em se consolidar como produto de sucesso popular massivo no meio da música sertaneja.

Aos 25 anos, Reddy Allor, que prefere ser tratada no feminino, é nascida em Olímpia, interior de São Paulo, e hoje mora em São José do Rio Preto. Durante mais de doze anos, dividiu os palcos interioranos com o irmão na dupla Guilherme e Gabriel. Desde 2018, adotou Reddy Allor como nome artístico, referência aos cabelos ruivos naturais da artista (red, em inglês) e à homofonia com "ready", pronto. Reddy se tornou um nome mais conhecido quando participou do reality "Queen Stars Brasil", da HBO Max, em 2022.

A drag queen Reddy Allor - @guilerbe/Divulgação

O parceiro de Reddy Allor no disco agora lançado é Gabeu, talvez o artista mais emblemático do queernejo. Filho do sertanejo Solimões, Gabeu nasceu em Franca (SP) em 1998. Ele se descobriu homossexual na adolescência, quando buscou distância da música sertaneja e sentia-se atraído por divas pop como Lady Gaga. Em 2022 o disco "Agropoc", gravado por Gabeu de forma independente, foi indicado ao Grammy como melhor álbum sertanejo.

Reddy Allor é uma cantora tipicamente sertaneja, com toda a qualidade vocal que o gênero de virtuoses demanda. Junto com Gabeu, que melhorou muito seu canto ao longo dos anos, saindo do timbre anasalado demais, a dupla mostra-se bem entrosada. Compositor em franca evolução criativa, Gabeu escreveu seis das oito canções do disco, sozinho ou com parcerias. Nas canções de apelo mais tradicional, é praticamente impossível ao ouvinte comum distinguir que se trata de cantores drag e homossexual cantando sertanejo. E isso, de fato, pouco deveria importar.

No entanto, parece ser impossível para artistas do queernejo não tematizar as pautas de gênero. O próprio release distribuído à imprensa sugere esta audição do disco: "O projeto conta com oito faixas que mostram a trajetória dos artistas saindo do interior, enfrentando os desafios no caminho e chegando na cidade grande". Ao chegar na metrópole, a tal Troia, percebem que lá não é o lugar deles e "partem para enfrentar uma guerra simbólica e lutar pelo direito de existir".

"Cavalo de Troia" é um disco-manifesto, com introdução e interlúdios como não se faz mais hoje em dia, época de singles independentes em busca de cliques e algoritmos. A faixa introdutória, uma moda de viola, a bonita "Passarinho", dá o tom do disco: "Passarinho que aprende a voar/ Quer voar para longe do ninho/ …/ O sonho de poder voar/ é maior que a angústia de se machucar". A terceira música, "Clichê dos Amores", remete o ouvinte a uma mistura de bachata com os boleros de Roberta Miranda.

O clímax do disco é a canção-título, "Cavalo de Troia", cuja letra diz: "Se a gente entra nesse baile/ É tiro, porrada e pipoco/ Se o povo não gostar da gente/ São tudo um bando de louco/ Vai ficar na memória, vai espantar a boiada/ Uma ameaça foi detectada/ …/ Nós vamos invadir sua festa/ Feito cavalo de troia".

Escolhida como a canção mais importante do disco, "Cavalo de Troia" tem arranjo de música eletrônica, e seu clipe foi lançado há cerca de um mês no YouTube. Nele, Gabeu e Reddy Allor aparecem combatendo cowboys estilizados, como num jogo de videogame. É uma pena que esta canção tenha sido a grande aposta do disco, pois é também a menos interessante.

A retórica da resistência homossexual ao mundo opressor se conclui com o bonito pagode de viola "Meu Santo", que consagra a tese do álbum: "Não posso fugir daquilo que estou destinado/ Parece que o medo passou/ Meu maior desejo é poder viver em paz/ Se há de vir a guerra,/ como Ogum vou guerrear".

O disco é consideravelmente mais bem acabado que a média da produção do queernejo. Será que, através do investimento maciço da gravadora Som Livre, Reddy Allor e Gabeu conseguirão sair do gueto queer, sendo veiculados como artistas sertanejos como quaisquer outros?

Talvez isso não ocorra. Não por falta de investimento, mas pela própria estratégia escolhida. A tática da combatividade serve mais para demarcar identidade do que criar pontes e interlocuções. Até quando os artistas LGBTQIA+ terão que ser monotemáticos para serem ouvidos?

O mesmo cansaço que se tem quando se ouve canções sobre pegação e bebedeira nas monotemáticas canções da maior parte do sertanejo hétero, existe nos discos queer, que bailam em cima da mesma pauta insistentemente. Outras causas, mas permanece a mesmice temática. No caso, a apologia da resistência como alegoria do cotidiano de gênero e sexualidade, como se viver esta identidade se resumisse a isso.

Ilustrativa desta alegoria é a capa do disco, que apresenta Gabeu e Reddy Allor como dois guerreiros medievais lutando por justiça acompanhados do tal cavalo de Troia. A estética da resistência conforta os corações vitimizados. Mas será capaz de seduzir cowboys abatidos? Entre o brega e o espalhafatoso, a performance dos artistas se aproxima mais do segundo, o que os afasta da tradição da música sertaneja universitária das primeiras décadas do século.

Por outro lado, a mistura com a música eletrônica os aproxima da geração do agronejo, subgênero no qual se destacaram nomes como Ana Castela, DJ Chris no Beat, Luan Pereira e Us Agroboys nos últimos anos. Alguns destes cantores do agronejo são adeptos das pautas do agro e do bolsonarismo.

Paradoxalmente, estes artistas do agronejo também têm uma visão vitimizada sobre si, pois se veem subestimados pelas elites culturais do país, endossando o ranço bolsonarista de vitimização no campo cultural. É a mesma lógica da estética da resistência queer, apenas invertida de lado. Embora pareça diametralmente oposta esteticamente, o queernejo não está tão distante assim do agronejo. Suas lógicas discursivas são bastante parecidas.

O queernejo conseguirá dar esse passo em direção ao mainstream, superando a condição de gueto da música sertaneja? Até que ponto hoje, em época de sucessos massivos construídos através das redes sociais, ter uma gravadora é determinante? Será a gravadora Som Livre este "cavalo de Troia"? O tempo dirá.

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