Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso

O agronejo e seus inimigos

Nas suas músicas, gênero 'se vinga' daqueles que o desprezavam

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É inegável que o crescimento do agronegócio foi importante para a história da música sertaneja. A música sertaneja se beneficiou da expansão de um centro econômico no Brasil dos anos 2000, no Centro-Oeste. Simbólico dessa conjunção foi a criação do que se convencionou chamar de agronejo.

Vertente da música sertaneja surgida nos anos 2020, o agronejo leva a associação entre música e agronegócio a um passo além. Diferentemente do sertanejo universitário da primeira década do século 21, onde praticamente não se falava do agronegócio, o agronejo tem no mercado rural o seu pilar poético.

No agronejo, a regra é a apologia do agronegócio de alta produtividade, especialmente a soja e o gado. O homem do campo é visto como empreendedor e sua visão de mundo e ethos são positivados. Roupas, carros e hábitos de consumo são defendidos como forma de ascensão social.

Casa de Gusttavo Lima - Divulgação

Canções como "Agro é Top", de Léo & Raphael, com 24 milhões de visualizações no YouTube, ilustram essa postura. Outras vão na mesma linha, como "Rei do Agro", de Antony & Gabriel, "O Agro Nunca Para", de Us Agroboy, "Respeita o Agro", de Loubet e "O Agro Dispara", de Adson e Alana.

Mesmo com tanta apologia embutida nos títulos das canções, ainda assim é possível analisar as letras do agronejo buscando nas entrelinhas. O que move o agronejo é um ranço difuso contra alguns adversários simbólicos.

Retrato de Jota Lennon e Gabriel Vitor de Freitas, da dupla Us Agroboy, um dos principais nomes do agronejo
Jota Lennon e Gabriel Vitor de Freitas, a dupla Us Agroboy, um dos principais nomes do agronejo - Divulgação

A identidade do agronejo se constrói polarizando contra três arquétipos: 1) o "playboy", sujeito identificado à cultura urbana e ao Brasil praieiro; 2) o imaginário urbano arrogante, que identifica o lado rural do país como mero atraso e sem cultura, frequentemente ridicularizado na imagem do caipira; e 3) as "elites culturais", que ao longo de todo o século 20 determinaram o que deveria ser visto e ouvido como "cultura nacional".

O sucesso financeiro conquistado pelos "agroboys" seria então uma vingança contra os "playboys" da cidade grande e as elites culturais. Exemplo desse discurso é a música "A Roça Venceu", de Antony & Gabriel, que diz: "Falaram que quem nasce peão/ nunca vai botar o pé numa mansão/ Falaram que quem veio da roça/ nunca vai levar uma vida luxuosa/ É nóis tomando a pinga/ Da cana que nóis colheu/ Pro azar do playboy/ a roça venceu".

A dupla Us Agroboys foram pelo mesma vereda em "Fazendinha de Madeira", faixa gravada ao lado dos veteranos Fernando & Sorocaba: "Enquanto a 'playboyzada' só ria de mim/ Hoje quem ri sou eu de quem desacreditou/ A roça venceu, o agro estourou".

Em "Ram Tchuuu", a dupla Antony & Gabriel canta: "O agro dominou de norte a sul/ Paredão estralando e a Dodge Ram/ Camisa xadrez e fivelão/ A roça deixa os 'playboy' tudo de queixo no chão". Em "Rei do
Agro
", Antony & Gabriel revidam: "Já fui humilhado, maltratado/ por andar todo sujo de barro/ Tiraram sarro por que eu falo tudo errado e ando de cavalo/ Tentaram me derrubar no chão/ mas se esqueceram que eu sou peão/ De gado em gado e de grão em grão, o resultado deu bom/ De caipira humilhado, pra rei do agro".

Em "Galera da Rodagem", Adson & Alana cantam: "Mamãe, não virei doutor/ papai, não virei engenheiro/ Mas transporto o progresso do Brasil/ sendo um caminhoneiro". Em "Caipira Forever", Hugo & Castellari perguntam: "De onde vem a cerveja que você bebe e a carne que você come?/ Responde, responde/ Camisa de algodão que você veste/ Cada grão que você consome? Responde! Ficou mudo!/ É por causa de nós que até o produto inteiro é bruto/ É o povo da roça da mão calejada e grossa/ Que nunca entrou de greve/ Por isso eu sou caipira/ caipira forever".

Em "Hino Agro", Ana Castela e Leo & Raphael se exaltam: "Não tenho vergonha/ da minha raiz de caipira/ E onde eu garanto/ o pão de cada dia, é na lida/ Ah, não é porque eu vim da roça/ que eu não vou vingar/ Eu, eu sou roceiro/ Com muito orgulho/ do interior/ Eu sou boiadeiro/ sou puro sangue".

O agronejo representa simbolicamente uma ruptura social com o imaginário desenvolvimentista do Brasil do século passado. Para os artistas do agronejo, ser o país da soja e do gado basta como modelo de desenvolvimento nacional. É, em essência, uma crítica aos modelos desenvolvimentistas industrializantes e urbanizantes de nossa história.

Durante quase todo o século 20, elites intelectuais de direita e esquerda disputaram o sentido de urbanidade e modernização industrial que o Brasil deveria seguir. A esperança era que, por meio do desenvolvimentismo industrial, chegaríamos à condição de país de primeiro mundo. Êxodo rural e industrialização foram acompanhados de intensa urbanização ao longo do século 20.

No entanto, os problemas estruturais do Brasil não foram superados. Não viramos "primeiro mundo". Parece estarmos presos eternamente à condição de país "em desenvolvimento". Isso abriu brecha para a volta do discurso colonial que defende a mera exportação de matérias-primas como projeto de país.

No entanto, voltar à condição de mero exportador de bens primários dificilmente promoverá a inclusão de largas parcelas ainda hoje excluídas. Gostem ou não os agronejos, o Brasil tem hoje 80% de sua população vivendo nas cidades e os dramas nacionais não podem ser reduzidos a simplificações grosseiras de um Estado colonial dependente de países tecnologicamente avançados.

Outros países também têm o agronegócio como pilar importante da economia, como os Estados Unidos. Mas os americanos estão longe de desejarem ser meros exportadores de matéria-prima. O que nós queremos como nação? Qual deve ser o lugar do Brasil no mundo globalizado do século 21? E qual deve ser o lugar do agronegócio na nossa economia?

Se o projeto desenvolvimentista mostrou seus limites distributivos, não custa lembrar que o modelo agroexportador vigorou por 400 anos na história do Brasil sem grandes inclusões, pelo contrário, reproduzindo uma sociedade extremamente desigual e embrutecida. Vivemos uma encruzilhada histórica.

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