Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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A música sertaneja está longe de ser o reino da mesmice

Se muitas vezes os cantores se mostram politicamente conservadores, esteticamente eles nunca o foram

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Uma das acusações mais frequentes à música sertaneja é a de que este gênero seria repetitivo. As canções seriam todas parecidas, sempre abordariam os mesmos temas e soariam quase todas iguais. Normalmente esse diagnóstico vem de pessoas com pouca ou nenhuma intimidade com o estilo.

Música sertaneja é, na verdade, um grande guarda-chuva de diversos gêneros. A incorporação de novidades está no DNA dela.

A música rural adentrou a indústria fonográfica em 1929, quando Cornélio Pires, um misto de agente, empresário e jornalista começou a gravar cantores do interior. De 1929 até 1953, usavam-se indistintamente termos como "caipira", "sertaneja", "do interior", "rural", para se descrever as canções dessa estirpe. Não havia depreciação valorativa ao se intercambiar adjetivos como "caipira" ou "sertanejo" para se falar desse tipo de gênero musical.

A cantora Ana Castela - Instagram/anacastelacantora

A partir de 1953 gêneros importados adentraram os sertões, sobretudo a guarânia paraguaia, o chamamé argentino, o bolero e a rancheira mexicanos. São dessa época canções como "Índia" e "Meu Primeiro Amor", guarânias de sucesso gravadas por Cascatinha e Inhana. Assim, tornou-se comum gravar gêneros latinos na música sertaneja. "Fio de Cabelo", um dos maiores sucessos da carreira de Chitãozinho & Xororó, gravada em 1982 é uma guarânia, assim como "Nuvem de Lágrimas" (1990). "Último Adeus" (1981), uma das mais bonitas canções do Trio Parada Dura, também. "Estrada da Vida" (1977), o maior sucesso de Milionário & José Rico, é uma rancheira. "Você Vai Ver" (1994), de Zezé Di Camargo e Luciano, é um bolero.

Em 1969 o rock entrou na música sertaneja através da dupla Leo Canhoto & Robertinho, e guitarras, baixos e baterias tornaram-se instrumentos comuns na instrumentação e arranjos sertanejos. Na década de 1980 entraram também o brega e o country. "Cowboy do Asfalto" (1990), gravada por Chitãozinho & Xororó, é um country. "É o Amor" (1991), de Zezé Di Camargo & Luciano, é uma balada brega.

Com o aumento das importações estéticas, criou-se uma cisão da música rural. Os autodenominados "caipiras" rejeitaram as importações e buscaram preservar as supostas raízes "autênticas" da música rural. Os sertanejos foram cada vez mais fundo incorporando gêneros exógenos.

Grande parte da obra de Victor & Leo, como o hit "Deus e Eu no Sertão" (2008), pode ser classificada como folk music. Baladas com a cara da Jovem Guarda são a marca de boa parte da carreira de Jorge & Mateus. O forró aparece com frequência na música sertaneja: "Ai Se Eu te Pego" (2011), o maior sucesso internacional do gênero, gravada por Michel Teló, é o maior exemplo. "Eu Quero Tchu, Eu Quero Tcha" (2011), sucesso de João Lucas & Marcelo é a síntese da música sertaneja com o funk.

O arrocha teve marcos como "Vai Vendo" (2014), com Lucas Lucco. O reggaeton entrou com várias músicas em meados da década passada: "Loka" (2017), de Simone & Simaria, com participação de Anitta, foi mais um exemplo, assim como "Acordando o Prédio" (2016), de Luan Santana.

O disco "O Embaixador", um grande sucesso lançado por Gusttavo Lima em 2018 tinha nove bachatas, gênero musical de origem dominicana: "Zé da Recaída", "Respeita o Nosso Fim", "Carrinho na Areia", "Conta-Gotas", "Mundo de Ilusões", "Cem Mil", "Tudo que um Dia Vai um Dia Volta", "Sujeito" e "Eu Não Iria".

O maior sucesso de Marília Mendonça, "Infiel" (2016), é um bolero. Em 2022 vem surgindo um subgênero chamado agronejo, que traz a mistura de batidas eletrônicas com música pop, fala sobre o estilo de vida interiorano e exalta o agronegócio. Nomes como Ana Castela, com "Boiadeira", e Leo & Raphael, com "Os Menino [sic] da Pecuária", são exemplos.

Sempre é possível questionar a qualidade da produção sertaneja. Afinal, com tanta ousadia estética, é natural que algumas besteiras sejam produzidas. Os sertanejos convivem com um paradoxo interessante: se muitas vezes os músicos se mostram politicamente conservadores, esteticamente eles nunca o foram. Impera desde os anos 1950 a vontade de dialogar e incorporar outros gêneros. A música sertaneja está longe de ser o reino da mesmice que os críticos gostam de apontar.

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